Engarrafamentos, contradições e voluntarismos

De JK até Dilma Rousseff, somente o presidente Ernesto Geisel assumiu uma postura claramente oposta à expansão da venda de automóveis
As vias públicas e os estacionamentos de Curitiba e das grandes cidades do Brasil estão entupidos de automóveis. O Plano Piloto de Brasília, projetado para o fluxo de carros, entope toda manhã e todo final de tarde. Palmas, capital do Tocantins, idem. Acasos e improvisos podem gerar engarrafamentos momentâneos. Engarrafamentos sistemáticos e onipresentes são obras de décadas.
Os atuais engarrafamentos foram gerados em 1955, quando a indústria brasileira mal conseguia produzir liquidificadores. Naquele ano, em campanha para a Presidência da República, Juscelino Kubitschek prometeu que o país fabricaria 100 mil automóveis por ano. Eleito, JK viajou para a Europa, onde visitou montadoras de automóveis. No governo, investiu em estradas e desfilou em cima do primeiro Fusca que saiu rodando de uma linha de montagem nacional. De JK até Dilma Rousseff, somente o presidente Ernesto Geisel assumiu uma postura claramente oposta à expansão da venda de automóveis. E não por crenças contrárias ao transporte individual, mas devido à crise econômica causada pelos aumentos dos valores do petróleo.
A opção pelo automóvel alterou a ocupação do território, pois a movimentação permitia que os moradores dos planaltos descessem as serras nas férias. Os mercadores de imóveis perceberam a mudança, adquiriram glebas próximas ao mar e lotearam grande parte do litoral do país. Os automóveis também esparramaram as cidades brasileiras, ao permitir que as pessoas morassem longe do trabalho ou da escola dos filhos. Os empregos diretos e indiretos da indústria automobilística tornaram-se vitais para a economia e para a política. Em 2008, por exemplo, quando se iniciou a crise econômica mundial, uma das primeiras medidas do governo federal foi baixar os impostos dos modelos 1.0, a fim de evitar o desemprego.
JK prometeu que o Brasil fabricaria 100 mil automóveis por ano. Em 2010, o Brasil fabricou 3,64 milhões de automóveis. Diante da vasta importância econômica e política do automóvel, parece utópico discutir soluções para o trânsito baseando-se apenas em critérios técnicos ou em boas intenções. Parece utópico, mas os urbanistas não cansam de tentar, com resultados que, em geral, pecam pelas contradições e pelos voluntarismos.
Curitiba, por exemplo, tenta cultivar a fama de propor soluções urbanísticas. Qualquer urbanista desta terra tem pronto um discurso no qual o automóvel é um vilão que prejudica a qualidade cotidiana das nossas cidades. Porém alguns dos mesmos urbanistas orgulham-se do salto econômico que proporcionaram à economia local graças à atração de montadoras de veículos. A contradição é evidente: o automóvel é mau, a indústria automobilística é boa...
Da mesma maneira, a diminuição dos impostos do setor automobilístico, em 2008, incrementou a produção industrial e garantiu uma imensa popularidade para o governo. Mais uma vez, a contradição é evidente: os economistas do governo apelam aos automóveis para tentar evitar o desemprego; urbanistas lotados no Ministério das Cidades lamentam o caos e a degradação ambiental causados pelos automóveis.
Nessa situação, o voluntarismo mais comum é divulgar a necessidade de uma “conscientização” em favor do transporte coletivo e ao desincentivo do transporte individual. Porém há algumas dúvidas na empreitada. Pode-se duvidar do interesse do governo federal na “conscientização”. Afinal, os impostos embutidos no preço de um automóvel (cerca de 27%) tornam o governo num sócio interessadíssimo na expansão da indústria automobilística. Pode-se duvidar de que a classe C vá se interessar por tal “conscientização”, depois de esperar décadas pela estabilização econômica e pela democratização do crédito, e que, logo agora, quando conseguiu adquirir automóveis em condições de circular, decida deixá-los na garagem. Pode-se também duvidar de que os trabalhadores do setor automotivo (do metalúrgico ao borracheiro de beira de estrada) estejam interessados em diminuir a produção.
Só haverá uma solução na data utópica quando todas as partes do problema (União, estados, municípios, sindicatos etc.) se articularem, reajustando um sistema que vem sendo montado há meio século. Tal articulação será tão complexa quanto um tratado de física quântica. Enquanto não chegar, este pobre escriba e todos os outros estarão condenados a emitir opiniões desencontradas, que pecarão pelas contradições e pelos voluntarismos.

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Irã Taborda Dudeque, arquiteto e professor na PUCPR

Fonte do texto: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1152974&tit=Engarrafamentos-contradicoes-e-voluntarismos

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