A Solidão dos Edifícios (Parte 1) / Rafael Moneo

Escolhi três edifícios para exemplificar meu trabalho. Eles diferem com respeito às exigências e às condições do sítio, mas todos são edifícios públicos. Eles podem ser considerados como representativos do meu trabalho dos últimos dez anos.

Rafael Moneo

Por que edifícios ao invés de projetos? Por que trabalho ao invés de discurso teórico? Eu acredito que na crua realidade de obras construídas é possível ver claramente a essência de um projeto, a consistência de ideias. Eu acredito fortemente que arquitetura precisa do suporte da matéria; que o primeiro é inseparável do segundo. A arquitetura surge quando nossos pensamentos sobre ela adquirem a condição real que somente os materiais podem fornecer. Aceitando e negociando com as limitações e restrições, com o ato de construção, a arquitetura se torna o que ela realmente é.

Eu sei que essas palavras podem parecer estranhas hoje em dia. Primeiro, porque nós estamos numa escola de arquitetura onde a aprendizagem é baseada na convenção implicada nos desenhos e modelos. Segundo, porque durante os últimos, deixem-me dizer, cinquenta anos, muitos arquitetos tem acreditado que a construção não é digna do esforço que envolve. Para eles, a tarefa foi terminada na prancheta, evitando qualquer contaminação. E medo de contaminação é compreensível. Arquitetura como uma profissão é um longo caminho além de satisfazer qualquer um que ame a disciplina. Ela perdeu a importância que tinha na sociedade no passado. Victor Hugo disse que os livros mataram as catedrais; isso não era de todo verdade então, mas eu vejo que hoje podemos dizer que a comunicação em massa tem reduzido a relevância da arquitetura. Arquitetura já não e vital, nem no mais pragmático ponto de vista que a identifica com cidades e residências, e tampouco como o reservatório de comunicação simbólica. Os arquitetos inconscientemente reconhecem esse problema, mas não estão dispostos a encarar isso diretamente. E logo, apesar de que eles gostariam de conectar a arquitetura com a sociedade e a realidade como no passado, eles normalmente tomam um caminho errado e se tornam profetas de sonhos utópicos. Os arquitetos desejam um maior papel para a arquitetura, ou pelo menos uma posição mais respeitada. E percebendo isso como inalcançável, nós arquitetos estamos nos protegendo nutrindo a fantasia de que a arquitetura pode ser representada simplesmente através de desenhos. Tal visão tem sido suportada pela dialética entre utopia e realidade. Se os arquitetos não servirem à realidade, eles ao menos trabalharão para o mundo futuro sonhado em utopia. Tal visão tem produzido belos desenhos e apresentado maravilhosas intenções, mas na minha opinião esses esforços não são intrinsecamente arquitetura –o que não quer dizer que as pessoas que agem assim não sejam arquitetos.

Sabe-se quão importante esse assunto é hoje, mas ao mesmo tempo ele é rejeitado pelos arquitetos, na medida em que os edifícios começam a aparecer como meros reflexos de desenhos ou como diretas representações físicas de um processo. Isso modifica dramaticamente a relação entre edifício e realidade. Muitos arquitetos atualmente inventam processos ou técnicas de desenho sem se preocupar com a realidade do edifício. A tirania dos desenhos é evidente em muitos edifícios quando o construtor trata de seguir literalmente o desenho. A realidade pertence ao desenho, não ao edifício. Existem muitos exemplos dessa atitude que eu não preciso elaborá-la. Os edifícios se referem tão diretamente à definição do arquiteto e são tão desconectados com a operação de edificar que a única referência é o desenho. Porém um verdadeiro desenho arquitetônico deveria implicar sobretudo todo o conhecimento de construção. Hoje muitos arquitetos ignoram problemas sobre como uma obra será construída. Alguns argumentarão que isso aconteceu no passado, que algumas obras foram executadas sem serem visitadas por seus arquitetos, quem confiaram diretamente em desenhos e especificações para a execução de seus projetos. Mas, claro, todos irão concordar que os arquitetos no passado tiraram vantagem de uma coerência social que não existe hoje. Um desenho aceito, antes que ele fosse desenhado, convenções edilícias seguras. Foi somente recentemente, talvez com alguns arquitetos do Iluminismo, que a conexão entre expressão gráfica e conhecimento edilício começou a se dissolver.

Na outra mão, muitos arquitetos acreditam que a obra de arquitetura deve envolver o registro exato de um processo. Se na década de 1920 a ideia de promenade architecturelle transformou a estrutura do edifício e produziu uma série de sequências que introduziram a ideia de movimento, na década de 1980 a ideia de arquitetura como a conclusão física que consolida um processo mental tem tomado lugar. Por essa transformação de um processo mental na realidade consolidada, a própria expressão de um edifício se torna menos importante que a expressão dos pensamentos do arquiteto. Além disso, a natureza automática da produção da arquitetura impede a autonomia do objeto. E, naturalmente, questionamentos surgem: pode o processo ser considerado o cerne da arquitetura? A arquitetura não reside na produção de algo mais? Pode o simples registro do processo se tornar a realidade que chamamos arquitetura? São os edifícios simples transposições tridimensionais de desenhos ou o resultado de um tão comentado processo? Anteriormente esse não era o caso, quando os arquitetos pensavam antes na realidade do edifício e depois na do desenho com o qual eles poderiam descrever esses pensamentos. Hoje, a ordem dessa relação está frequentemente invertida.

O resultado desse conflito com a física é que a arquitetura é transformada imediatamente tanto em reflexo de desenhos como na representação de um processo. O termo que melhor caracteriza o traço mais distintivo da arquitetura acadêmica hoje é “imediatismo”. A arquitetura tenta ser direta, imediata, a simples extensão dimensional dos desenhos. Os arquitetos querem manter o sabor dos seus desenhos. E se esse é o seu objetivo mais desejado, nesse desejo os arquitetos reduzem a arquitetura a um privado domínio pessoal. Segue que esse imediatismo transforma as intenções do arquiteto e torna o que deveria ser presumido como geral em pessoal, declaração expressionista. A arquitetura tem perdido seu necessário contato com a sociedade e, como resultado, tem se tornado um mundo privado.

Pode a arquitetura ser um mundo privado? Pode ela ser reduzida a uma expressão pessoal? Arquitetos, tão quanto admiram o reino pessoal no qual outros artistas parecem trabalhar, não trabalham sob as mesmas condições. Seu trabalho deveria ser, na minha opinião, compartilhado por outros ou, pelo menos, não deveria ser tão pessoal como para invadir o domínio público de uma maneira que não mais pertença naturalmente à esfera do entorno público. A arquitetura mesma implica envolvimento público desde o momento específico no qual o processo de projeto começa até o fim da construção. E novamente estamos num terreno escorregadio, porque os limites entre os mundos públicos e privados hoje são mais confusos que nunca. Quando arquitetura é produzida em cidades, ela expressa uma ideia pública. As cidades têm uma necessidade de uma arquitetura que seja tanto uma ferramenta, no sentido de transformar artificialmente o contexto físico, como uma estrutura de suporte da vida social. A noção de uma linguagem compartilhada para produzir o mundo dos objetos –os diferentes tipos de edifícios nos quais e com os quais nós vivemos– emerge como dádiva para entender a arquitetura e sua produção. E, portanto, eu não penso que nós podemos justificar enquanto arquitetura os intentos de alguns artistas que, confundindo nossa disciplina com alguma experiência tridimensional, criam objetos desconhecidos que em momentos se relacionam a uma mímesis natural e em outros, aludem a máquinas inutilizáveis.

Porém, sem a conexão que existia no passado entre projeto e produção, construtores se tornaram meros instrumentos, e técnica se tornou subjugada –um escravo. A intimidade entre arquitetura e construção tem sido quebrada. Essa intimidade foi uma vez a própria natureza da obra arquitetônica e de alguma forma foi sempre manifestada na sua aparência. Nós sabemos que um discurso determinístico não explica a arquitetura, mas admitimos que os arquitetos deveriam aceitar técnicas e utilizar sistemas construtivos para iniciar o processo da invenção formal que termina em arquitetura. Mesmo uma arquitetura como a de Le Corbusier deveria ser vista à luz da honrada aceitação das tecnologias construtivas com a base para a proposta formal. E para ser um arquiteto, portanto, está tradicionalmente implicado ser um construtor; ou seja, explicando a outros como construir. O conhecimento (quando não o domínio) das técnicas construtivas esteve sempre implícita na ideia de produzir arquitetura. O conhecimento de princípios construtivos deveria ser tão completo como para permitir ao arquiteto a invenção formal que sempre precede o fato da construção mesma. Deveria aparecer como se as técnicas impostas tenham aceitado os limites da forma; para isso, é o reconhecimento desses limites que reproduz explicitamente a presença dos procedimentos construtivos na arquitetura. Paradoxalmente, é a flexibilidade técnica que permite aos arquitetos esquecerem a presença da técnica. A flexibilidade das técnicas atuais tem resultado no seu desaparecimento, tanto na própria arquitetura como no processo de pensar sobre ela. Isso é algo novo. Os arquitetos no passado eram tanto arquitetos como construtores. Antes da presente dissociação, a invenção da forma era também a invenção da sua construção. Uma implicava a outra.

Referência: Aula Magna, Kenzo Tange Visiting Professor Chair / Harvard University Graduate School of Design, 1985

Texto original em inglês / Tradução ao português: Igor Fracalossi

Citar: Moneo , Rafael . "A Solidão dos Edifícios (Parte 1) / Rafael Moneo" 09 Feb 2012. ArchDaily. Accessed 16 Feb 2012. http://www.archdaily.com.br/26794/a-solidao-dos-edificios-parte-1-rafael-moneo/

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