Além dos Mestres Modernistas: Arquitetura Contemporânea na América Latina / Felipe Hernández

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As cidades e edifícios latino-americanos continuam a figurar proeminentemente na história da arquitetura. De fato, a atenção à produção arquitetônica nessa parte do mundo tem crescido a partir da primeira década do século XXI. Poderia ser argumentado que os arquitetos latino-americanos contemporâneos estão recebendo mais reconhecimentos internacionais como jamais haviam antes. Importantes revistas europeias e norte-americanas, como Architectural Review, Architectural Record, Domus e até populares publicações mensais não especializadas como Casabella e Wallpaper, têm dedicado numerosas páginas e edições especiais a obras recém-construídas na América Latina. De modo similar, tem ocorrido uma proliferação de monografias sobre a obra de arquitetos latino-americanos contemporâneos; naturalmente, esse livro forma parte de tal corpo literário. O que é mais, os arquitetos dos países latino-americanos têm ganhado todos os grandes prêmios mundiais de arquitetura nos passados dez anos.1 A lista de conquistas poderia continuar se eu mencionasse conferências, séries de palestras e bolsas de professor visitante em prestigiadas universidades ao redor do mundo. No entanto, não pretendo destacar as conquistas dos arquitetos da América Latina. Em vez disso, gostaria de dar atenção à maneira em que um grau de atenção internacional renovada rompe a imagem um tanto homogênea sugerida pelo termo “arquitetura latino-americana”. Isso é porque o foco de tal atenção renovada foi desviado a novas áreas de produção arquitetônica. Mais que se concentrar somente em edifícios produzidos durante mediados do século XX por um reduzido grupo de talentosos e entusiasmados arquitetos modernistas, as publicações recentes se focam na geração mais jovem de arquitetos cujo trabalho difere fortemente daquele dos seus antecessores modernistas. Não somente é uma variação encontrada na forma dos edifícios, mas, mais importante, nos temas e aspirações dos jovens arquitetos contemporâneos que trabalham em muitas das grandes cidades do mundo, em condições de pobreza – e imensa riqueza –, assim como em situações de instabilidade política e social. Os edifícios projetados por arquitetos na América Latina nos passados 20 anos continuam a apresentar uma grande criatividade formal, porém as supracitadas condições de prática demandam mais consciência política. Como resultado, os projetos têm se tornado menos ambiciosos em escala e mais específicos à situação. Entretanto, a natureza dos seus trabalhos e as condições de prática nos países latino-americanos contemporâneos impede a construção de uma identidade continental homogênea; inclusive a existência de identidades nacionais é contestada pela diversidade de práticas arquitetônicas que participam na contínua reconfiguração das cidades na América Latina.

Apesar de um ressurgido interesse, o volume literário existente sobre arquiteturas na América Latina, especialmente o material publicado em língua inglesa, se focam na arquitetura moderna. De fato, muitos livros recentes estabelecem um limite cronológico entre 1929 e 1960 como o período mais representativo da produção arquitetônica no continente. Dois desses livros são Building the New World: Studies in the Modern Architecture of Latin American 1930-1960 de Valerie Fraser e o volume titulado Latin American Architecture 1929-1960: Contemporary Reflections editado por Carlos Brillembourg. Outros volumes publicados por volta da mesma época são Latin American Architecture: Six Voices de Malcolm Quantrill, um livro no qual seis críticas examinam a obra de seis arquitetos modernistas de seis países latino-americanos, e Brazil’s Modern Architecture de Elisabetta Andreoli e Adrian Forty, um livro que expressa, na primeira frase, quão dependente são as arquiteturas latino-americanas da obra de alguns poucos arquitetos modernistas – aqueles aos quais eu me referirei, nesse livro, como os mestres modernistas.2 Entre os mais influentes mestres modernistas estão Luis Barragán, Paulo Mendes da Rocha, Oscar Niemeyer, Rogelio Salmona e Carlos Raúl Villanueva. Existem, entretanto, outras numerosas figuras que desempenharam um importante papel na disseminação do modernismo arquitetônico pelo continente, por exemplo: Eladio Dieste (Uruguai), Cristian de Groote (Chile), Gorka Dorronsoro (Venezuela), Carlos Mijares (México) e Clorindo Testa (Argentina), para mencionar só alguns. Embora a obra desse grupo seguinte de arquitetos não tenha recebido a mesma quantidade de exibição internacional, seus edifícios contribuíram fortemente ao desenvolvimento dos ideais arquitetônicos nos seus países e à construção, por estudiosos internacionais, de uma identidade continental homogênea baseada na arquitetura moderna.

Sem dúvidas, o período entre 1929 e 1960 foi de grandes mudanças para a maioria das nações do continente. Foi um período de transição quando fundamentalmente as economias agrárias se transformaram irregularmente em estados de industrialização. Por transformação irregular eu me refiro ao fato que a industrialização não aconteceu simultaneamente em todas as nações ao longo do continente e que, inclusive no interior de cada país, ela não foi um processo homogêneo. A industrialização trouxe consigo um novo sistema econômico que levou a uma maior disparidade socioeconômica e instabilidade política. Havia, por exemplo, grande tensão entre diferentes formas de nacionalismo: aqueles que promulgaram a recuperação de suas tradições – pré-colombianas ou indígenas, e até padrões coloniais – e aqueles que se subscreveram aos princípios modernistas de progresso e universalização. As ideias socialistas cresceram. Havia também grupos políticos dissidentes e, na outra ponta do espectro, muitos regimes de direita em vários países pelo continente. Múltiplos fatores influenciaram a instabilidade sociopolítica que caracterizou esse período histórico. Além disso, eles estão todos relacionados, de uma maneira ou de outra, às enormes transformações causadas pelo declínio do sistema agrário-feudal predominante e pela emergência de uma industrialização precária, à qual eu me refiro com a expressão ‘um estado de industrialização’. Isso porque a industrialização não foi resultado da consolidação de ‘sociedades industrializadas’, ou economias, mas de uma ampla gama de ‘versões de industrialização’ que serviam aos interesses das elites nacionais. Em outras palavras, as elites locais queriam manter os privilégios que o sistema anterior garantia, enquanto tiravam vantagem dos benefícios gerados pelo desenvolvimento industrial.

Compreensivelmente, os governos liberais em muitos estados-nações latino-americanos adotaram a arquitetura moderna durante esse período instável, porque servia à retórica do progresso que eles promulgavam. Num tempo em que as cidades estavam crescendo rapidamente devido à crescente migração de pessoas das zonas rurais às cidades principais, a arquitetura moderna parecia capaz de fornecer as soluções necessárias para garantir bons padrões de vida para todos, enquanto também estimulava o desenvolvimento econômico. Uma vez que a tecnologia para produzir a arquitetura moderna não estava completamente disponível em todos os países, sua própria implementação motivou o desenvolvimento industrial ao instigar a criação de fábricas para a produção de cimento, aço e vidro, materiais necessários para a construção de edifícios modernos. Foi a imagem de modernidade – dinamismo cultural, industrialização e expansão econômica – que persuadiu políticos a apoiar entusiasticamente a arquitetura moderna.

Texto original em inglês: Felipe Hernández / Tradução ao português: Igor Fracalossi

Referência: Hernández, Felipe. “Beyond Modernist Masters: Contemporary Architecture in Latin America”. Basel: Birkhäuser, 2010, pp. 7-9.

  1. Rogelio Salmona recebeu a Medalha Alvar Aalto em 2003. O escritório mexicano Higuera + Sanchez ganhou o Leão de Ouro da Bienal de Veneza em 2006 e Alejandro Aravena recebeu o Leão de Prata na edição seguinte em 2008. José Cruz Ovalle ganhou o Prêmio Spirit of Nature em 2008, depois de vencer a Bienal Ibero-americana de Arquitetura e Urbanismo em 2004, um prêmio que o arquiteto colombiano Giancarlo Mazzanti também recebeu em 2008, junto com o primeiro prêmio da Bienal Pan-americana de Arquitetura. Angelo Bucci e sua equipe receberam o segundo lugar no Prêmio Holcim de 2008. Além disso, o mais renomado de todos foi o Prêmio Pritzker dado a Paulo Mendes da Rocha em 2006 – uma honra que ele compartilha com outros dois arquitetos latino-americanos: Luis Barragán (1980) e Oscar Niemeyer (1988).
  2. A primeira frase de Brazil’s Modern Architecture diz: ‘A arquitetura brasileira é famosa, mas é uma fama que descansa sobre a obra de poucos arquitetos – Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Affonso Reidy e um ou dois outros – construída em mediados do século XX’. Ver Andreoli, E. e A. Forty (editores) Brazil’s Modern Architecture. Londres: Phaidon, 2004, p. 8.

Fonte:

Citar: Hernández , Felipe . "Além dos Mestres Modernistas: Arquitetura Contemporânea na América Latina / Felipe Hernández" 15 Mar 2012. ArchDaily. Accessed 16 Mar 2012.http://www.archdaily.com.br/38053/alem-dos-mestres-modernistas-arquitetura-contemporanea-na-america-latina-felipe-hernandez/

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