A imobilidade nas cidades

As cidades brasileiras entraram em colapso de imobilidade. A situação compromete diariamente o tempo, a saúde e a produtividade de milhares de pessoas e representa o maior desafio dos atuais gestores urbanos. O sucesso ou fracasso de uma gestão municipal estará diretamente relacionado à solução deste problema, que é muito mais complexa que construir novos corredores e viadutos, melhorar o transporte público, apelar para a tecnologia de ponta, regularizar as calçadas ou fomentar o uso de bicicletas e outros meios de transporte alternativos.

O problema não se resolve em termos quantitativos, nem na relação lógica de causa e efeito, nem com burocracia e tecnocracia administrativa. É preciso entender a complexidade do fato urbano e as relações com o território, assim como abrir a mente para novos conceitos que superem o modelo atual de construção da cidade. Isto implica enfrentar interesses de setores que se beneficiam com um modelo que redunda em muito lucro para poucos e muitos inconvenientes para todos, promover um debate participativo e democrático com a sociedade organizada, elaborar um diagnóstico da situação atual da mobilidade, conscientizar a população acerca da necessidade e conveniência de mudar hábitos e comportamentos, determinar estratégias e objetivos para o curto, médio e longo prazo.

Ponto de partida essencial é estabelecer a hierarquia dos componentes do problema: o pedestre antes que o automóvel; a calçada antes que a rua; os espaços públicos antes que as obras de engenharia do trânsito; o transporte público antes que o privado; o espaço urbano como ambiente de vivência social antes que como local de passagem entre um ponto e outro. A inversão de hierarquias em relação à situação atual significa a mudança do paradigma de gestão e do modelo de cidade em construção. Enrique Peñaloza afirma que “se a cidade é o lugar do encontro por excelência, mais que qualquer outra coisa, a cidade é seu espaço público pedestre. Os seres humanos não podem estar no espaço dos automóveis, nem nos espaços privados que não lhes pertencem. A quantidade e a qualidade do espaço público pedestre determinam a qualidade urbanística de uma cidade” (1)

A cidade de planejamento tecnocrático e fragmentado, baseado em indicadores abstratos e alheios à configuração de uma paisagem urbana e ao favorecimento da convivência social, precisa ser orientada para outros modelos que estimulem a apropriação pacífica e civilizada dos espaços públicos. Neste contexto, um projeto de mobilidade urbana terá mais possibilidades de ser resolvido que na continuidade da situação atual. Substituir os automóveis pelas pessoas nos objetivos centrais das decisões arquitetônicas e urbanísticas constitui um passo fundamental para iniciar as transformações necessárias.

As leis de uso e ocupação do solo devem ser orientadas nesse sentido. O modelo de cidade implícito nelas e as arquiteturas que hoje são permitidas construir pouco contribuem para a solução da mobilidade. Ao contrário, nos centros comerciais e edifícios residenciais e empresariais de uso exclusivo encontra-se a origem da imobilidade. Esse modelo urbano propõe a fragmentação e isolamento das funções e serviços, assim como os empreendimentos propõem edifícios totalmente dependentes do automóvel para funcionar e estabelecer as redes de contatos com a cidade, ao mesmo tempo que negam a integração social e estimulam a violência e a exclusão.

Uma nova visão de cidade torna-se imprescindível para evoluir na direção de uma sociedade mais justa e integrada e, conseqüentemente, mais favorável a resolver problemas críticos, como o da mobilidade. O estímulo do uso misto, a criação de novas centralidades urbanas, a promoção de usos que integram as pessoas, o cuidado e controle espontâneo do espaço público pelos próprios moradores são, dentre outras, orientações válidas para definir novos paradigmas de uso e apropriação da cidade pelas pessoas e, conseqüentemente, diminuir sensivelmente a presença de automóveis nas ruas. Continuar a construção da cidade com edifícios de uso exclusivo, baseados em estruturas sociais defensivas, com paisagens urbanas de muros e guaritas, significa continuar um modelo pernicioso que só contribui para engessar e complicar o funcionamento das cidades, até elas morrerem de imobilidade.

1- Enrique Peñaloza, ex-prefeito de Bogotá, no prólogo do livro de JAN GEHL La humanización del espacio urbano, Ed. Reverté, S.A, Barcelona, 2006.

Roberto Ghione é arquiteto e diretor do IAB/PE

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