Diversidade e misturas

As cidades são feitas de diversidade, habitadas por pessoas de diferentes raças, cores, crenças, ideologias, comportamentos, hábitos sociais, facilidades econômicas, padrões culturais e níveis de informação e conhecimento. Tal circunstância, própria da natureza humana, implica estimular o respeito e tolerância pelas características éticas, sociais, culturais, políticas e ideológicas dos grupos que convivem em comunidade, se o objetivo é atingir níveis adequados de civilidade em ordem e progresso. Caminhos em contrário só resultam em utopias igualitárias, ditaduras impositivas ou desencanto e decadência social e urbana, marcas do mais angustiante subdesenvolvimento.
Tal diversidade, misturada e integrada, tem lugar na cidade, espaço que, por sua natureza, congrega e confronta, harmônica ou violentamente, as diferentes vivências, desejos, necessidades e expectativas das pessoas que compartilham um mesmo território urbano. Por sua complexidade, resultarão sempre imperfeitas e incompletas as previsões dos comportamentos humanos, assim como as leis, planos e projetos de organização do espaço físico. A dialética entre as imprevisibilidades dos comportamentos e tendências e a necessidade de planejar o desenvolvimento social e urbano esbarra em leis e projetos que se apresentam “duros” ou “engessados” perante a diversidade das organizações sociais, especialmente quando tendem a ser enquadrados nos esquemas rígidos do mercado imobiliário ou do imediatismo político, que reduzem uma realidade rica e complexa a esquemas mesquinhos de transação comercial ou de interesse eleitoreiro. O conceito de processo, aberto e variável, sujeito a critérios e interpretações em lugar da rigidez e intransigência da lei abstrata e redutiva, se apresenta como um mecanismo talvez mais apropriado do que os modos atuais de planejar e construir as cidades, baseados em normas burocráticas, deterministas e acríticas.
As experiências de planejamento (ou a falta dele) nas cidades brasileiras demonstram, cruamente, a persistente ausência de princípios básicos de integração entre desenvolvimento urbano e social. Uma noção que percorre ideologicamente os diferentes planos e propostas é a de zonificação e favorecimento de usos do solo exclusivos, persistência de idéias superadas, que a cultura da modernidade legou e que ainda interferem nas configurações da cidade contemporânea. Tal pensamento, abstrato e reducionista, já foi debatido, criticado e superado no contexto internacional, porém parece obstinado em perdurar na consciência dos planejadores urbanos do Brasil. A complexidade do fato urbano exige misturas e integrações entre os diferentes usos que dão sentido a configuração da cidade, respondem à diversidade dos componentes sociais, promovem a inclusão e estimulam a apropriação real e efetiva dos espaços urbanos, elementos primários de socialização e convivência civilizada.
As cidades feitas de edifícios de uso exclusivo não merecem ser chamadas de tal. Elas são uma acumulação de edifícios e um empilhamento de pessoas sem as estruturas mínimas de convivência social nem de apropriação dos espaços públicos. Não existe cidade se não existem os espaços que promovam a integração entre os habitantes. Para isso, precisa-se do uso misto, princípio elementar de constituição urbana, garantia de convivência civilizada, estímulo para a utilização dos espaços públicos, certeza de segurança pela própria presença dos habitantes nas ruas. Todo o contrário do que acontece nas cidades brasileiras, constituídas por edifícios e condomínios defensivos de uso exclusivo, anti-sociais e excludentes, estimuladores da violência e da segregação. Com eles, a sociedade entra em uma espiral de individualismo classista, enquanto a cidade perde suas condições de âmbito de convivência e desenvolvimento harmônico e civilizado.
Diversidade e misturas fazem parte da natureza humana e, portanto, do planejamento e construção das cidades. Desconsiderar estes princípios, que a história ensina, implica desconhecer as mais elementares práticas de planejamento e gestão do desenvolvimento urbano. A abstração tecnicista e as interpretações fragmentadas da realidade tem isolado, freqüentemente, a visão do planejador das reais necessidades e expectativas dos cidadãos. Resulta incompreensível que tais atitudes perdurem à luz da evolução do conhecimento sociológico e urbanístico contemporâneo. O colapso das cidades brasileiras é demonstração efetiva de uma perda de rumo que merece ser retomada, em caráter emergencial, em favor de um desenvolvimento social e urbano sadio e civilizado. A sociedade tem demonstrado decepção e desconforto com uma série de circunstâncias que possuem, na anomalia e ausência do convívio urbano civilizado, talvez uma das causas dos movimentos de reivindicação social e política. A arquitetura e o urbanismo devem uma contribuição ao desenvolvimento que a sociedade, hoje mais esclarecida, reclama, sem consciência efetiva que na estrutura fragmentada e excludente das nossas cidades reside um dos germens da insatisfação coletiva.


Roberto Ghione é Arquiteto e Diretor do IAB/PE

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