Urbanismo e democracia

A democracia é um dos sistemas de organização social e política menos imperfeitos, baseado na participação e na representação. Como manifestação de civilidade é praticada, nos países de cultura ocidental, em todos os processos de decisão acerca de objetivos de interesse comum. A cultura das práticas democráticas é um dos pilares do desenvolvimento, complementado com a educação, que permite decidir com inteligência ações em defesa do interesse geral, desde questões de Estado até simples resoluções de convivência cotidiana. Os países que atingem maior grau de desenvolvimento são aqueles onde as práticas democráticas e as decisões inteligentes fazem parte essencial do comportamento das pessoas.

A cidade é o ambiente para a convivência civilizada de pessoas que decidem o próprio destino mediante as maiorias proporcionais obtidas pelas práticas democráticas, que tem, na política, o espaço para o debate e, no urbanismo, a disciplina para a organização do território onde se constroem as estruturas que possibilitam o desenvolvimento.

Nas últimas décadas, a sociedade brasileira vive o paradoxo da democracia institucional juntamente com a ditadura do capital, que exacerba as diferenças manifestadas nos conflitos vivenciados em quase todos os centros urbanos e que demonstram a crise de legitimidade das decisões adotadas. A democracia brasileira é de aparência e não de essência, e isso se torna evidente na ausência de práticas urbanísticas comprometidas com o efetivo desenvolvimento das cidades. Este processo se agrava com a complacência de setores da mídia institucionalizada, que tiram partido de práticas interesseiras em benefício próprio e difundem o modelo capitalista como paradigma de comportamento e desenvolvimento.

A prática urbanística deveria, por natureza, ter essência democrática. Porém, urbanismo não combina com democracia se uma parte considerável dos habitantes de uma cidade não possui os direitos mais elementares de habitação, saneamento, serviços e mobilidade; se grupos sociais são condenados a morar em edifícios defensivos e condomínios fechados por medo da violência urbana; se não existem opções de mobilidade qualificada; se não existe preocupação pela criação e manutenção de espaços públicos estimulantes do convívio cidadão; se não é promovida a valorização da arquitetura como manifestação cultural da sociedade; se não é protegido o patrimônio ambiental e construído; se a conivência entre o poder político e setores do poder econômico decidem em função de interesses minoritários; se a corrupção persiste em detrimento da qualidade urbana.

A ditadura do capital só poderá ser derrubada com mobilização da sociedade esclarecida reclamando o direito à cidade. A perda de qualidade e urbanidade é resultado de um processo gradativo de expulsão das pessoas dos espaços públicos. Diferentes fatores contribuíram para isso, como o acelerado processo de urbanização das últimas décadas, a transferência de população rural e a proliferação de periferias desqualificadas; a persistência de sistemas sociais baseados na divisão de classes e aprofundamento da desigualdade e exclusão, com o consequente aumento da violência urbana; a opção política pela indústria automotiva, os sistemas rodoviários e o transporte individual em detrimento do transporte público qualificado; as políticas interesseiras, que beneficiam a determinados setores em prejuízo do bem estar da maioria, dentre outros.

A reconquista do espaço público permitirá legitimar as boas práticas urbanísticas e retornar à convivência pacífica e civilizada. Reconquistar a cidade significa colocar as pessoas no centro de todas as propostas políticas e urbanas. Para isso, a sociedade brasileira precisa superar a democracia formal e assumir a democracia real, aquela que possibilita a efetiva integração social e se manifesta na convivência plena em espaços qualificados, sem preocupação com a violência que hoje divide e isola à sociedade em estruturas fragmentadas e defensivas.

O poder político deve ser cobrado para programar e utilizar mecanismos legais que permitam orientar o capital na realização de investimentos favoráveis a um projeto de cidade inclusiva e participativa, sustento da democracia real. A qualificação urbana neste sentido vai proporcionar benefícios para os próprios investidores, que valorizarão seus empreendimentos através da valorização do espaço público. Resulta imperativo superar a visão míope do lucro individual e imediato, pelo benefício social em cidades submetidas a persistentes processos de recomposição urbana e reconquista dos espaços públicos para as pessoas. Só assim, a democracia terá plena vigência e o urbanismo assumirá sua verdadeira natureza de transformação e qualificação.

Roberto Ghione, arquiteto

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