Consciência material / Richard Sennett

No encontro da Associação Britânica de Medicina em 2006, quando as paixões de médicos e enfermeiros transbordaram, uma sala foi designada para o excedente de jornalistas, membros do público como eu, e profissionais de medicina que não puderam entrar ao salão principal. Algumas apresentações científicas devem ter ocorrido previamente nessa sala, para aparecer no telão em frente aos nossos assentos uma imagem em cores de uma mão coberta por uma luva de borracha segurando uma parte do intestino grosso de um paciente em operação cirúrgica. Os jornalistas olhavam ocasionalmente para essa imagem monstruosa somente para virar a cara como se ela fosse algo obsceno. Os médicos e enfermeiros na sala, entretanto, pareciam dar a ela mais e mais atenção, especialmente àqueles momentos quando as vozes dos oficiais do governo soavam através dos autofalantes, murmurando sobre reforma.

A súbita atenção ao que quer que a mão enluvada estivesse fazendo com o intestino grosso é consciência material. Todos os artesãos a têm, até aqueles que praticam a mais arcana das artes. O pintor Edgar Degas se supõe que uma vez comentou a Stéphane Mallarmé, “Tenho uma ideia maravilhosa para um poema, mas não consigo desenvolvê-la”, sobre o que Mallarmé replicou, “Meu caro Edgar, poemas não são feitos com ideias, são feitos com palavras.”.

Como é de se imaginar, “consciência material” é uma expressão que faz os filósofos salivarem. É a nossa consciência das coisas independente das coisas em si? Somos cientes das palavras de maneira que sintamos tocar um intestino? Mais que se perder nessa floresta filosófica, é melhor focar no que faz interessante um objeto. Este é o preciso âmbito da consciência do artesão; todos seus esforços em realizar obras de boa qualidade dependem da curiosidade sobre o material à mão.

Quero fazer uma simples proposta sobre essa consciência material comprometida: nós nos tornamos particularmente interessados por coisas que podemos modificar. A gigantesca imagem do intestino humano na tela era intrigante porque os cirurgiões estavam, de fato, fazendo algo esquisito com ele. As pessoas investem pensamento em coisas que elas podem modificar, e tal pensamento giram em torno a três problemas-chave: metamorfose, presença, e antropomorfose. A metamorfose pode ser tão direta quanto uma mudança no procedimento, como quando oleiros deixam de moldar a argila numa base fixa para erguê-la num torno giratório; oleiros que fazem ambas as coisas serão conscientes da diferença na técnica. A presença pode ser registrada simplesmente ao deixar uma marca do autor, tal como um carimbo do tijoleiro. A antropomorfose ocorre quando atribuímos qualidades humanas a um material bruto; supostamente, culturas primitivas imaginavam que os espíritos habitavam uma árvore, e portanto num corte axial da sua madeira; os sofisticados personalizam os materiais quando usam palavras comomodesto ou simpático para descrever detalhes da terminação de um móvel.

Neste capítulo, investigarei cada uma dessas formas de consciência material em profundidade, entre artesãos que trabalham com argila.

Metamorfose
O Conto do Oleiro

A maneira mais fácil de fazer um vaso cerâmico é espiralar uma corda de argila em torno de um disco plano.[1] Uma pequena inovação é colocar uma cabaça cortada embaixo do disco para que o vaso possa ser girado mais facilmente pelas mãos do oleiro, já que o espiral sobe pelas bordas. Essa pequena inovação sugere um passo ainda maior, aquele de usar um torno giratório.

Esse passo foi levado a cabo por volta do ano 4.000 a.C. no que é agora o Iraque e disseminado ao Mediterrâneo a oeste por volta do ano 2.500 a.C. Tornos de oleiros gregos do ano 1.000 a.C. aproximadamente em diante eram madeiras pesadas ou discos de pedra que giravam num suporte de pedra pontiaguda. Um assistente auxiliava e girava o torno enquanto o oleiro modelava a argila com as duas mãos. O momentum do torno giratório sugeria uma maneira inteiramente nova de produzir a forma em vez do espiral de corda; agora o oleiro poderia erguer um pedaço húmido de argila. Se pequeno, o vaso era estruturalmente uma peça única. Vasos maiores poderiam ser montados ajustando tubos moldados no torno. Quer fosse pequeno ou grande, o oleiro, após o vaso começar a secar, removia o excesso de argila com um estilete enquanto ele girava sobre o torno.

Cerâmicas arcaicas e antigas certamente se tornaram mais complexas a partir do ano 800 a.C aproximadamente em diante. Entretanto, a pura utilidade não explicaria essa lógica, à medida que a fabricação com corda produzia objetos servíveis perfeitos, e fazia vasos mais rapidamente que a fabricação com torno. A utilidade isolada tampouco explicaria o pensamento decorativo que irrompeu na superfície desses vasos.

Toda cerâmica pode ser decorada com o uso de estampilhas. Tratam-se de argilas muito refinadas de diferentes cores, que, uma vez secas, podem ser misturadas para criar cores mais fortes e então serem pintadas na superfície de um vaso. Estampilhas antigas diferem dos vidrados cerâmicos modernos pela falta de um maior conteúdo de sílica. Os gregos, entretanto, desenvolveram técnicas para controlar a queima no forno de modo que a superfície obtivesse um brilho vítreo. A oleira moderna Susanne Staubach idealizou como o oleiro grego usava o forno como um laboratório químico para obter esses resultados policromáticos. Os fornos eram aquecidos a uma temperatura de 900 graus Celsius para oxidar a argila. Em seguida era lançada serragem ao forno para iniciar o processo de redução. Se deixada nesse ponto, entretanto, a estampilha não registraria sua cor distintiva. O oleiro descobriu uma maneira de reoxidar a argila abrindo a válvula de ar do forno. O corpo do vaso agora se tornou vermelho enquanto que as figuras pintadas com estampilha permaneceram negras. O mesmo contraste aparecia invertido quando a estampilha era pintada como fundo.[2]

Mudanças na técnica de estampilha abriram expressivas possibilidades aos oleiros. O vaso utilitário usado para armazenagem e cozimento, decorado singelamente, poderia agora ser pintado com cenas que mostravam aos gregos a natureza de seus mitos e os eventos significativos de sua história. À medida que a cerâmica grega evoluiu, essas imagens pintadas se tornaram mais que puras representações, finalmente servindo como comentários sociais –os absurdos da luxúria na idade antiga, por exemplo, retratada por homens gordos e calvos com genitais pesados e flácidos perseguindo jovens ágeis e formosas.

A decoração desse tipo não carecia de valor econômico. O vaso decorado tornou-se um “objeto pictórico que –destaca o classicista John Boardman– poderia entreter, e até instruir, compradores em casa ou afora.”[3] Com o tempo, a cerâmica tornou-se um importante elemento no comércio mediterrâneo. Os oleiros que experimentaram séculos antes usando uma pedra giratória no lugar de uma cabaça não poderiam haver previsto seu valor.

Não temos registro escrito algum sobre o que os antigos oleiros pensavam sobre o torno cerâmico, só podemos inferir que eles eram conscientes do que estavam fazendo porque suas ferramentas e práticas mudaram e porque os oleiros no início da era clássica usavam ambos os procedimentos. Queremos esboçar a inferência de que eles sabiam o que estavam fazendo porque isso serve como advertência contra as estórias de “faz-de-conta” que afligem as considerações sobre tecnologia.

A consideração de faz-de-conta supõe que um câmbio tem que acontecer somente de certa maneira, cada passo levando implacavelmente ao seguinte; o criador não poderia fazer ou pensar qualquer outra –como em “a cunha única do cinzel conduziuinevitavelmente à unha dupla do martelo”. Essa explicação de faz-de-conta é inteiramente retrospectiva em caráter. Olhando para trás no tempo, novamente, parece perfeitamente lógico que o torno giratório causaria um câmbio no espiral de corda para a elaboração de um vaso, mas como poderia o indivíduo que por primeira vez substituiu sua cabaça por uma pedra saber o que nós sabemos? Talvez o oleiro estivesse confuso, talvez exaltado –os quais são estados de consciência mais acertados que “só pode ter sido assim”.

No capítulo sobre o atelier, o transcurso do tempo provou ser uma maneira de separar ofício e arte: a prática do ofício é expandida, a arte original é um evento mais imediato. O oleiro antigo vivia num tempo expandido; depois que o torno giratório apareceu por primeira vez, transcorreram séculos antes que a prática formada pela manipulação da argila se tornasse rotina. A assimilação de uma prática, na qual as ações da mão gradualmente se tornam conhecimento tácito, explica essa longue durée. E levantam outra bandeira de advertência.

Alguns seguidores de Adam Smith ocuparam o fato de que a maioria dos ofícios levam muito tempo para serem assimilados como um signo de que os trabalhadores manuais não são, em geração alguma, particularmente conscientes de si mesmos, de que eles dão por garantido os procedimentos e se dedicam apenas ao trabalho tal como sabem. Os escritos de John Ruskin contestaram essa tola visão: o sentido de tradição de Ruskin é que os erros, imperfeições, e variações que estão presentes em qualquer prática são transmitidos de geração em geração; a suscitação mental dessas incertezas não são borradas pelo tempo. Por volta do ano 600 a.C. havia grandes diferenças na qualidade dos vasos produzidos em torno ao Egeu. A visão de Ruskin é que os próprios artesãos teriam notado e cuidado dessas diferenças. O salto dos discos fixos aos tornos giratórios sugere um ato de atenção semelhante. O possível rango de variação da forma em argila, bem como da prática, não poderia estar claro em dado momento somente porque o tempo de trabalho do artesão era lento. Posto como princípio, isso quer dizer que a metamorfose desperta a mente.

A metamorfose era uma preocupação na mitologia antiga. O mundo antigo associava os saltos em forma, escreve o historiador E. R. Dodds, com o irracional.[4] A magia aumenta os riscos de eventos inesperados e dá às mudanças em forma um atraente poder de produzir encanto e temor. Ovídio declarava no começo deMetamorfoses: “Meu propósito é discorrer sobre corpos transformados em formas de outra classe”, e alcança notoriamente seu propósito na estória de Acteon, que quebrou a lei divina por ver uma deusa nua, os deuses então repentinamente o transformaram em cervo, devorado por seus próprios cães. Encanto e medo governaram o mito de Pandora, como no perfume que, liberado do seu frasco, se torna uma praga. Isso é despertar (arousal) por magia.

Ainda assim, a metamorfose como os antigos a conceberam não era completamente um processo irracional. Os mitos baseavam-se em física. Materialistas antigos como Heráclito e Parmênides acreditavam que toda a realidade física é uma infinita recombinação, uma incessante metamorfose, dos quatro elementos básicos da natureza: fogo, água, terra, e ar. Ao contrário da ciência moderna da evolução, na qual a seta da transformação aponta para a complexidade crescente, para aqueles ancestrais, todo processo natural parecia se dirigir à entropia, o decaimento da forma aos quatro elementos mais básicos: da água à água, da argila à argila, estados primários a partir dos quais novas recombinações, novas metamorfoses poderiam ocorrer.[5]

O desafio cultural era como resistir a esse ciclo natural de metamorfose –como combater o decaimento. Platão encontrou uma solução filosófica na famosa imagem de uma “linha dividida” em A República, uma linha de conhecimento que se torna crescentemente durável; embora coisas físicas decaiam, suas formas ou ideias perduram.[6] Em resposta aos seus contemporâneos em fluxo material, Platão afirmava que uma fórmula matemática é uma ideia independente da tinta usada para escrevê-la.[7] Pela mesma razão, Aristóteles argumentava, a expressão verbal não é limitada pelos sons específicos das palavras –é por isso que podemos traduzir de uma língua para outra.

O desejo por algo mais duradouro que materiais em decomposição é uma das fontes na civilização ocidental para a suposta superioridade da mente sobre a mão, o teórico melhor que o artesão porque as ideias duram.  Esse convencimento deixou felizes os filósofos, mas não deveria. Theoria compartilha uma raiz em grego com theatron, um teatro, que significa literalmente um “lugar para ver”.[8] O filósofo pode pagar um certo preço no teatro de ideias por ideias duradouras que o artesão no atelier não pode.

No teatro arcaico existia relativamente pouca divisão entre espectador e intérprete, ver e fazer; as pessoas dançavam e falavam, logo se retiravam a um assento de pedra para assistir outros dançar e declamar. No tempo de Aristóteles, atores e dançarinos tornaram-se uma casta com habilidades especiais para o vestuário, a oratória, e o movimento. A audiência mantinha-se do lado de fora, e assim desenvolviam suas próprias habilidades de interpretação como espectadores. Como críticos, a audiência procurava especular então sobre o que os personagens do palco não entendiam sobre si mesmos (embora o coro do palco algumas vezes também assumia esse papel clarificador). O classicista Myles Burnyeat acredita que aqui, no teatro clássico, jaz a origem da frase “ver com os olhos da mente”.[9] O que quer dizer, pensar separado do fazer, os “olhos da mente” de uma observador mais que de um fazedor.

O artesão, comprometido num contínuo diálogo com os materiais, não sofre essa divisão. Seu despertar é mais completo. Parte da grande ambivalência de Platão sobre o artesão era que ele sabia disso. O mesmo filósofo que acreditava que uma ideia transcendia a tinta com a qual é escrita exaltava os artesãos como demiurgos; eles eram igualmente comprometidos com as coisas materiais e com eles mesmos. O atelier tem uma alegação que fazer conta o teatro, prática contra teoria. Ainda assim, como poderia o artesão resguardar-se do decaimento? A argila, o mais filosófico dos materiais, mostra três diferentes maneiras nas quais seu artesão poderia guiar a metamorfose do seu ofício.

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Metamorfose ordenada pode ocorrer, em primeiro lugar, por meio da evolução de uma forma-tipo. Uma “forma-tipo” é o termo da tecnologia utilizado para uma categoria genérica de objeto; a transformação ocorre através da elaboração de suas espécies. Uma vez que a antiga tecnologia de estampilhas foi elaborada, por exemplo, as cerâmicas puderam ser produzidas com superfícies vermelhas ou negras. Cada forma-tipo pode gerar espécies confusas. Podemos pensar em alguns exemplos modernos. O sociólogo Harvey Molotch cita o exemplo moderno do PT Cruiser, um automóvel que ajusta a tecnologia do século XXI a um corpo retrô estilo 1950.[10] No entorno construído da Bretanha, a vila de Poundbury é uma forma-tipo similarmente evoluída, suas casas compostas por uma infraestrutura moderna são envelopadas num falso medieval, Elizabetano, ou em roupas Geórgicas. Uma evolução ainda mais confusa da forma-tipo ocorre quando uma nova condição material sugere o novo uso de uma nova ferramenta: para voltar ao antigo trabalho em argila, altas temperaturas do forno implicaram uma maneira diferente de operar sua válvula de ar.

O historiador de tecnologia Henry Petroski insiste apropriadamente na importância da falha salutar na metamorfose interna da forma-tipo. Quando um objeto tão simples quanto um vaso quebra ou tão complexa quanto uma ponte se desloca, o primeiro alvo do analista são seus detalhes, suas pequenas partes. Elas reclamam imediatamente por atenção, e os elementos da forma-tipo podem então se transformar e evoluir. Esse micro-alerta parece ser o modo sensível para lidar com a falha ou tentativa e erro, e para Petroski ele testifica uma consciência saudável. Pouco pode ser aprendido com perder a calma, que seria imaginar todo o projeto desencaminhado porque um pedaço não funciona. (Um exemplo de perda de calma foi a resposta pública britânica à Millennium Bridge, uma ponte de pedestres projetada por Ove Arup e Norman Foster para cruzar o rio Tâmisa. No começo, ela oscilou ligeiramente; o público imaginou que ela desabaria, o que não seria possível; um ajuste no seu mecanismo de amortecimento corrigiu a oscilação.) A observação de Petroski nos leva um passo adiante no pensamento de Madame d’Épinay sobre modelos. A falha pode parecer demandar uma reconfiguração orgânica, a mínima mudança recompondo a relação de todas as partes entre elas, porém os ajustes tecnológicos devem não funcionar desse modo: não existe necessidade de transformar a forma-tipo inteira. À medida que as partes das espécies evoluem, elas podem de fato fazer o tipo genérico mais viável.[11] Uma simples observação encapsula essa durabilidade: os vasos cerâmicos antigos incorporavam outras práticas visuais, porém permaneciam vasos, mais que se metamorfosearem em esculturas.

Um segundo tipo de metamorfose antrópica ocorre quando dois ou mais elementos dissímis são unidos, como na combinação das tecnologias do radio e da rede fixa de telefone. Aqui o artesão tem conscientemente que decidir se a combinação funcionará melhor como um composto, no qual o todo se torna diferente de suas partes, ou como uma mistura, na qual os elementos continuam uma coexistência independente. Nos ofícios que estudamos até agora, a ourivesaria enfatizava a importância da mistura, já que na fundição e na quilatação o ourives procurava separar o ouro dos metais básicos com os quais ele se encontrava frequentemente misturado; o ourives honesto suspeitava das misturas fraudulentas da alquimia. A vidraria, em contraste, requereu uma atitude mais positiva de síntese. O aclaramento do corante na vidraria medieval requereu a introdução de materiais como o manganês e calcário, que reescreviam a fórmula química básica da substância; a síntese era então avaliada praticamente pela claridade do vidro. O oleiro antigo tinha que decidir entre esses dois procedimentos na mescla de esmaltes vidrados. Existem vários tons de negro nas cerâmicas antigas: alguns eram produzidos por composição química, outros por estratificação, aquecendo então um vidrado sobre o outro para produzir o negror.

Talvez a metamorfose que mais desafia o fazedor a manter conscientemente a forma é o “salto de domínio”. Esse termo –de minha cunhagem– refere-se a como uma ferramenta inicialmente utilizada para certo propósito pode ser aplicada à outra tarefa, ou a como o princípio guia de uma prática pode ser aplicado à outra atividade. As formas-tipo desenvolvem-se, por assim dizer, num território determinado; os saltos de domínio atravessam suas fronteiras. A experiência da metamorfose do oleiro antigo jaz no desenvolvimento interno de uma forma-tipo; para isso, poderíamos destacar a tecelagem, ofício celebrado por primeira vez no hino de Hefesto; um ofício que viajou através dos domínios.

O tear doméstico arcaico consistia simplesmente em duas hastes verticais atravessadas por uma trave. Os fios, tensionados por pesos localizados embaixo, eram atados nessa trave; o tecelão trabalhava atravessado, começando por cima, e empurrando continuamente os fios horizontais para cima para entrelaçar o tecido. “Teça cuidadosamente, faça um bom tecido, com muitos fios da trama numa curta extensão da urdidura”, aconselhava o historiador Hesíodo.[12] O tecido, entrelaçado em ângulos retos, terá então uma forma bem definida.

A união da trama e da urdidura do tecido saltou domínios originando a ensambladura em malhete da construção naval. Nessa ensambladura, duas peças de madeira são travadas, a extremidade de uma encaixa-se no lado da outra, as duas peças de madeira algumas vezes são tarugadas juntas, outras vezes são encaixadas obliquamente e assim não é necessário tarugo algum. A ensambladura em malhete é uma maneira de tecer madeira; ambos, tecelão e carpinteiro, concentram-se em fazer precisas uniões em ângulo reto. Até onde se sabe, os carpinteiros arcaicos por muito tempo possuíram à mão os cinzéis para fazer tais ensambladuras, porém não os utilizavam para esse propósito. O salto ocorreu à medida que as cidades gregas começaram a colonizar povoados distantes de seus lares. As ensambladuras desacunhadas das velhas embarcações, cobertas por alcatrão, desgastavam-se nessas longas viagens marítimas, logo no século sexto a.C. os carpinteiros navais começaram a usar o malhete para tratar os cascos não estanques.

Essa metamorfose evolui a um novo domínio, à medida que os travamentos ortogonais tanto do tecido quanto da madeira sugeriam uma maneira de ordenar as ruas. Planos mais antigos conectavam edifícios individuais, mas a cidade grega de Selinos, por exemplo, fundada na Sicília em 627 a.C., era pura trama e urdidura; a esquina em si era enfatizada como o elemento principal do desenho. A imagem de uma “malha urbana” não era aqui uma metáfora casual, senão uma descrição direta; de modo similar, Selinos tinha a justeza e a compacidade de um barco.

Como em cerâmica, essas permutações em tecelagem ocorreram lentamente, destiladas pela prática mais que ditadas pela teoria. O que perdura, o que não decai, é a técnica de focalizar no ângulo reto. Saltos de domínio, quando afirmados categoricamente, parecem contra-intuitivos: à primeira vista não faz sentido algum vincular um barco a um tecido. Porém, o lento trabalho do artesão forja a lógica e mantém a forma. Muitas proposições que parecem contra-intuitivas não o são; nós apenas não sabemos suas conexões ainda. O vagaroso labor do artesão é um meio para descobri-las.

Os saltos de domínios são as metamorfoses que mais impressionaram o antropologista Claude Lévi-Strauss, o Ovídio da antropologia moderna; o tema da metamorfose o preocupou por toda sua longa vida. O ofício fundacional para ele é a cozinha, mais que a cerâmica, a tecelagem ou a carpintaria, porém a lógica da mudança em sua visão se aplica para todos os ofícios. Ele apresenta a mudança com um triângulo culinário, em suas palavras, um “um campo semântico triangular cujos três pontos correspondem respectivamente às categorias do cru, do cozido, e do apodrecido.”[13] O cru é o reino da natureza, como os seres humanos a encontram; o cozer cria o reino da cultura, natureza metamorfoseada. Na produção cultural, Lévi-Strauss declara notavelmente, a comida é tanto boa para comer (bonne à manger) quanto boa para pensar (bonne à penser). Ele quer dizer isso literalmente: cozer comida produz a ideia de aquecer para outros propósitos; pessoas que compartilham partes de um cervo cozido começam a pensar que podem compartilhar partes de uma casa aquecida; a abstração “ele é uma cálida (warm) pessoa” (no sentido de “sociável”) se torna então passível de ser pensada.[14] Estes são saltos de domínio.

A argila teria servido a Lévi-Strauss igualmente bem; argila, como carne, é boa para pensar. Em cerâmica, a argila crua é “cozida” tanto pelas ferramentas que a modelam em vaso quanto pelo forno, o qual faz o papel literal de cozer. A argila cozida provê um meio de fazer imagens que, num vaso, criam uma narrativa à medida que o vaso é girado. Essa narrativa pode viajar, e pode ser negociada ou vendida com um artefato cultural. O que Lévi-Strauss insistia era em que o valor simbólico é inseparável da noção da condição material de um objeto; seus criadores pensaram os dois ao mesmo tempo.

Em suma, metamorfose provoca consciência material de três maneiras: através da evolução interna de uma forma-tipo, no julgamento sobre mistura e síntese, e pelo pensamento envolvido num salto de domínio. Dizer qual dessas três formas manteve pasmos os médicos requereria um conhecimento profissional do intestino grosso que eu infelizmente não tenho, mas suspeito que fosse um salto de domínio, baseado no comentário da minha vizinha que ela estava vendo algo “inconvencional”. Ela poderia reconhecer aquilo como estranho, ainda assim ela poderia dar atenção a ele e aprender dele, porque ela já possuía um oficio para guia-la naquele território estrangeiro.

Notas
[1] Sobre o torno cerâmico, ver Joseph Noble, “Pottery Manufacture”, em Carl Roebuck, ed., The Muses at Work: Arts, Crafts, and Professions in Ancient Greece and Rome, MIT Press, Cambridge, Mass., 1969, pp.120-122.
[2] Suzanne Staubach, Clay: The History and Evolution of Humankind’s Relationship with Earth’s Most Primal Element, Berkley, New York, 2005, p.67.
[3] John Boardman, The History of Greek Vases, Thames and Hudson, London, 2001, p.40.
[4] Ver E. R. Dodds, The Greeks and the Irrational, University of California Press, Berkeley, 2004), 2ª ed., pp.135-144.
[5] Para um excelente sumário, ver Richard C. Vitzthum, Materialism: An Affirmative History and Definition, Prometheus Books, Amherst, N.Y., 1995, pp.25-30.
[6] Platão, A República, 509d–513e.
[7] Platão, Theaetitus, 181b–190a.
[8] Ver Andrea Wilson Nightingale, Spectacles of Truth in Classical Greek Philosophy: Theoria in Its Cultural Context, Cambridge University Press, Cambridge, 2005.
[9] M. F. Burnyeat, “Long Walk to Wisdom”, TLS, 24 fev., 2006, p.9.
[10] Harvey Molotch, Where Stuff Comes From: How Toasters, Toilets, Cars, Computers, and Many Others Things Come to Be as They Are, Routledge, New York, 2003, p.113.
[11] Ver Henry Petroski, To Engineer Is Human: The Role of Failure in Successful Design, Macmillan, London, 1985, esp.75-84.
[12] Ver Annette B. Weiner, “Why Cloth?” em Weiner e Jane Schneider, eds., Cloth and Human Experience, Smithsonian Institution Press, Washington, D.C., 1989, p.33.
[13] Para uma afirmação simples, ver Claude Lévi-Strauss, “The Culinary Triangle”, New Society, 22 dez., 1966, pp.937-940. Uma explicação complete do triângulo culinário aparece em Lévi-Strauss, Introduction to a Science of Mythology, vol. 3, “The Origin of Table Manners”, trad. John e Doreen Weightman, Harper and Row, Nova York, 1978.
[14] Michael Symons, A History of Cooks and Cooking, Prospect, Londres, 2001, p.114, é falso acreditar que essa famosa formula representa estatus e prestígio, para Lévi-Strauss a “fisiologia pensante” unifica todas as sensações humanas através de símbolos.

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© Tradução: Igor Fracalossi.

Referência: Richard Sennett, “Material Consciousness”, em The Craftsman, Yale University Press, New Haven & Londres, 2008, pp.119-129.

٭ Nota: Por motivo de extensão, as partes ´Presença’ e Antropomorfose’, que completam a tríade juntamente com ‘Metamorfose’, não foram traduzidas. Porém, considero o trecho traduzido fundamental e mais abrangente que os demais, produzindo uma considerável noção das proposições do autor sobre a ‘Consciência Material’.

Fonte:Igor Fracalossi. "Consciência material / Richard Sennett" 13 Mar 2014. ArchDaily. Accessed 16 Mar 2014. http://www.archdaily.com.br/br/01-176965/consciencia-material-slash-richard-sennett

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