Arquitetura, indústria e poesia

"João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé, foi um exemplo do profissional idealista e engajado que deixou obras importantes no país, como as passarelas de Salvador e os hospitais da Rede SARAH de Brasília"

* Marcelo Ferraz

Passarela de Salvador. Foto: Nelson Kon

Passarela de Salvador. Foto: Nelson Kon

O Brasil está mais pobre. Morreu João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé. Figura mítica pelo seu caráter e comportamento franciscano, Lelé encarnou o ideal do arquiteto completo, dos primeiros sonhos que embalam o bom projeto ao rigor da construção no controle industrial de qualidade. Transitou como poucos entre a arte e a técnica, exercendo a profissão com extrema coerência, objetividade e apuro técnico, sem deixar de lado a poética. Tomou a arquitetura como ferramenta de atuação e transformação do mundo, na busca de conforto para as pessoas e para comunidades inteiras, até cidades.

Um apaixonado pelo Brasil, Lelé trabalhou de norte a sul, leste a oeste, tentando dar um jeito nos nossos problemas e carências. Mas parece que o Brasil não quis entendê-lo ou, pelo menos, não fez por merecer sua dedicação e talento, tantos foram os “tombos” que tomou, as interrupções de trabalhos, as promessas não cumpridas etc. Lelé costumava dizer que andou de fracasso em fracasso, entre inúmeros golpes que sofreu na profissão. Golpes quase inevitáveis para um profissional que opta por trabalhar com o poder público e luta por um Brasil melhor e mais justo.

Em um País com as dimensões e as carências do nosso, Lelé nos apresentou as soluções da construção pré-fabricada, seriada, da mais alta tecnologia, aliada a mais sofisticada simplicidade, com as quais poderíamos, em largos passos, alcançar um patamar superior em termos de qualidade e conforto na vida de nossas cidades. Talvez tenha sido o arquiteto que mais longe levou as propostas do Movimento Moderno de fazer uma arquitetura visando mudar o mundo torná-lo um lugar melhor.

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João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé. Foto: João Grinspum Ferraz

Talvez essa seja a via mais digna de viver uma profissão em seus ideais mais utópicos, pautados no fundamento de construir, edificar, transformar imundo em mundo, como diria o professor Agostinho da Silva, brilhante filósofo e amigo de Lelé. E foi exatamente o que Lelé fez em toda sua vida. Assim foram suas intervenções nas favelas do Rio de Janeiro e de Salvador nos anos 1980, com peças pré-moldadas de concreto e argamassa armada para canalizações de córregos, escadarias drenantes, tubulações de lixo, casas da comunidade e pequenas escolas.

Seus projetos para as passarelas de Salvador são dignos de todos os prêmios de design pela leveza estrutural, economia e coerência entre forma e função. São também dignos de todos os prêmios de urbanismo pelo acerto em cada implantação, conectando o que parecia distante e inacessível, ligando cumeadas, rompendo barreiras – vales, córregos e avenidas. E são passarelas cobertas, numa cidade de muita chuva e sol inclemente! As passarelas coloridas criadas por Lelé são hoje o melhor cartão postal da Salvador moderna.

Em um País com a escala do Brasil, o trabalho de Lelé é tudo de que precisamos, e muito: do projeto à produção industrial, da criatividade ao respeito aos trabalhadores; todos os seus atos e criações primam pela qualidade, palavra que parece ter desaparecido em nosso vocabulário da construção civil. Os hospitais da Rede Sarah estão aí para provar que a arquitetura pode ajudar muito no esforço de minimizar a dor e o sofrimento humano quando idealizada sob a medida das necessidades, da compreensão profunda dos problemas e, principalmente, quando concebida com humanidade.

Lelé poderia resolver grande parte de nossos problemas habitacionais com seu talento e conhecimento, e até tentou pouco tempo atrás com uma proposta para o programa “Minha casa, minha vida”. Mas nada foi adiante. Somou mais um golpe em seu currículo.

Ser o país do desperdício parece ser nossa sina desde os tempos da colônia. Desperdiçamos também muito do que Lelé poderia nos dar. Para muitos, ele passou a vida dando “pérola aos porcos”, tantas foram as amarguras e incompreensões encontradas. Mas sua arquitetura luminosa, plantada em todo o País, feita com tanta garra e persistência, prova que não foi assim. São exemplos de soluções, verdadeiras saídas para um mundo superpopuloso, conturbado e ainda extremamente injusto.

Sem Lelé, o Brasil está mais triste.

* Marcelo Ferraz é arquiteto, sócio do escritório Brasil Arquitetura, autor do livro Arquitetura Conversável, e trabalhou com Lelé no projeto de recuperação do centro histórico de Salvador, na década de 1990, na equipe de Lina Bo Bardi.

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Cama-Maca: Invenção de Lelé, que permite transporte sem dor

TRATAMENTO HUMANIZADO
por Campos da Paz

Conheci João da Gama Filgueiras Lima – o Lelé – quando, retornando da Inglaterra, passei a chefiar o 10º andar do Hospital Distrital, hoje Hospital de Base. Lá se internavam os traumatizados. Lá foi tratada Alda Rabelo Cunha, companheira de Lelé, que tinha sofrido grave acidente automobilístico. Na época, notívago como hoje, eu passava horas montando trações com os equipamentos que o Distrital havia recebido, pois tudo havia sido importado da América. Procurava as melhoras maneiras de viabilizar o tratamento conservador. Lelé acompanhava e desenhava esquemas, os quais eram pendurados nas paredes para que as enfermeiras pudessem reproduzi-los nos traumatisados.
Dessa nossa convivência, nasceu uma amizade caracterizada pela discussão constante sobre a humanização do tratamento que tanto nos interessava e que buscamos implementar. Em 1968, quando fui convidado para dirigir o Centro de Reabilitação SARAH Kubitschek – hoje o Sarinha –, surgiu a oportunidade de aproveitar os jardins que o cercavam, o sol, o verde, as plantas, enfim, agregar liberdade de espaço com tratamento. As camas pesadas eram empurradas para os jardins, onde se davam as visitas médicas. Os doentes, na maioria crianças, recebiam parentes em ambiente aberto e ensolarado. Essa vivência deu origem aos grandes espaços que Lelé projetou, em Brasília e, posteriormente, em todos os Hospitais da Rede SARAH. Implantou-se uma cultura, na qual a mobilidade, que foi dada pelo projeto de uma cama especial – a Cama-Maca –, permitia que o doente pudesse ser transportado sem o sofrimento, que muitas vezes ocorria com a sua remoção de um ponto para outro. Esse é o legado maior, o qual até hoje surpreende muitos: espaços e alegrias, sol no horizonte de Brasília, e não quartos como escritórios ocupados por burocratas equivocados, que não compreendem que a liberdade e o direito de vivenciar vários espaços, são fatores fundamentais para a cura.

*Dr.  Aloysio Campos da Paz Jr.,  médico, idealizador do SARAH- Centro  Nacional de Reabilitação, em Brasília.Com Lelé, ampliou o projeto para 10 unidades pelo Brasil.


AO LADO DE LELÉ
por Luciano Deviá


Conheci Lelé em 1979, um ano depois de minha chegada ao Brasil. Foi Roberto Pinho, antropólogo baiano, quem nos apresentou. Logo, Lelé me explicou a concepção do SARAH, com as camas-macas, os ambientes internos sem paredes, só biombos baixos que permitiam privacidade e, ao mesmo tempo, ventilação natural. Eu precisava desenvolver essas unidades móveis, muito leves (em alumínio sobre rodas), com  bandejas térmicas empilháveis em fiberglass para distribuir refeições. O pequeno galpão onde eu trabalhava, ao lado do hospital, era dividido em duas partes: uma reunia os designers, dois dos quais arquitetos (Claudio Blois e eu); e a outra era a oficina onde os técnicos ficavam à nossa disposição. Lelé sempre aparecia por lá. Um dia, o diretor do SARAH, Aloysio Campos da Paz Jr., que toca pistão, soube que toco piano e me convidou para uma canja na casa de Lelé – que também tocava piano. Eu desconhecia o lado músico dele e foi uma noite inesquecível.


*Luciano Deviá é arquiteto italiano formado pela Politécnica de Turim, Itália.

Fonte: http://www.revistabrasileiros.com.br/2014/06/06/arquitetura-industria-e-poesia/#.U6NQ_PldXA3

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