A importância das instituições humanas para Louis Kahn, por Luiz Florence

Por Luiz Florence

Edição 222 - Setembro/2012

Para Louis Kahn, a arquitetura moderna não se pretende a achar respostas para questões sociais, mas a expor a importância das instituições humanas ligadas ao saber, como o ensino, a ciência, a filosofia e a religião

Nascido em 1901 em Saarema, Estônia, Louis Kahn tornou-se cidadão norte-americano em 1905, juntamente com sua família. Críticos notáveis pautaram a avaliação de seu trabalho: Kenneth Frampton, por exemplo, evoca questões da análise tectônica como eixo central, enquanto Colin Rowe analisa a maneira como Kahn domina o repertório formal clássico e o expõe em seus projetos. Joseph Rykwert nos oferece uma abordagem sobre os efeitos de luz e transcendência. Escrever sobre Louis Kahn oferece, portanto, um desafio duplo: descrever sua obra de maneira concisa e oferecer algo que acrescente às narrativas existentes. Mas também traz prazer em diversos sentidos. Por sua obra, expandimos o entendimento sobre arquitetura moderna e norte-americana, aspectos da estética, da racionalidade e do espírito. Ler a obra de Kahn nos permite mobilizar conhecimentos técnicos e filosóficos, e ultrapassar as tradicionais barreiras do racionalismo clássico, nas quais a arquitetura moderna normalmente se encerra.

Fica clara a proposta de Kahn em superar a racionalidade simplista, com sua busca pelo orientalismo, com a elevação do espírito pelas formas platônicas, com os jogos de luz e o sentido de eternidade e permanência oferecido por seu jogo de materiais. Talvez a obra de Kahn esteja no patamar dos discursos de filósofos como Adorno e Foucault, em seu questionamento da racionalidade do iluminismo. Para Louis Kahn, a arquitetura moderna não se pretende a achar respostas para questões sociais, mas a expor a importância das instituições humanas ligadas ao saber: do aprendizado e da ciência (que emerge de como somos feitos) e da filosofia e da religião (para nos perguntar de onde viemos) como diz no livro Conversation with students. Neste ponto, Kahn é referência aos arquitetos paulistas nas décadas de 1960 e 1970 - seus ecos são perceptíveis na obra de Marcos Acayaba, de Paulo Mendes da Rocha e até de Vilanova Artigas. Ainda que seu contemporâneo, Oscar Niemeyer, esteja geograficamente mais próximo, a imagem do rigor estrutural e dos jogos geométricos de Kahn permeiam com maior intensidade o ideário da escola paulista. Seja pela subversão da parede rígida em jogos de paredes duplas, como no projeto do Salk Institute, em San Diego, relida nas empenas duplas e nos espaços servidos - artifício de projeto utilizado por Paulo Mendes da Rocha na Loja Forma e por Angelo Bucci no projeto da Biblioteca da PUC do Rio de Janeiro - ou pelos jogos de volumes puros conectados por espaços de circulação - podemos observar essa solução de projeto no campus da Universidade de Vigo e na Praça dos Museus, também projetos de Mendes da Rocha. Também nas estratégias tectônicas os exemplos comparativos são abundantes: o museu Kimbell, em Fort Worth, Texas, é referência assumida para a fazenda Pindorama, de Marcos Acayaba, e para as casas abobadadas da década de 1970 de Eduardo de Almeida.

Elizabeth Felicella/divulgação Yale University Art

1951/53
Yale University Art Gallery em New Haven, Connecticut, Estados Unidos

Roberto Fialho

1959/65
Salk Institute for Biological Studies, em La Jolla, Califórnia, Estados Unidos

A força simbólica não está reservada somente à sua obra. Louis Kahn encarna a imagem do arquiteto intelectualizado, ligado ao ensino, de postura austera, tímida e pouco chamativa - ao contrário dos arquitetos hedonistas da costa Oeste. Willian S. Huff captura a imagem de Kahn em obras literárias cuja temática resvala na arquitetura. Durante a década de 1950, em filmes e em peças literárias, a figura do arquiteto norte-americano era pintada em diversas cores, desde a figura mítica de Frank Lloyd Wright como o protagonista de Fontainhead de Ayn Rand, que afirmava a criatividade individual contra a figura das empresas de arquitetura, ou a imagem do gigante emergente do pós-guerra, o escritório Skidmore, Owens e Merril. No meio, a imagem do arquiteto-professor sempre formalmente vestido com gravata borboleta e paletó era alimentada pela referência de Kahn.

Bill Brookover

1960/67
Norman Fischer House, em Hatboro, Pensilvânia, Estados Unidos

Mas Kahn forneceu mais do que uma imagem arquetípica para a arquitetura moderna norte-americana. Mesmo a anedota do cinema nos serve para compreender a relação íntima entre o ambiente universitário e o posicionamento de Kahn frente às instituições humanas, onde reside o cerne de sua estratégia projetual. A academia estava entre as instituições humanas que considerava mais elevadas. Foi com a comissão para a galeria de arte de Yale, em New Haven, de 1951 e construída em 1953, que Kahn apresentou algo a mais do que o modernismo tradicional ao qual se restringiu nas décadas de 1930 e 1940. Se Kahn tivesse mantido a produção nos mesmos moldes nos quais produziu em seus primeiros 20 anos de carreira, seria mais fácil classificá-lo entre a geração de arquitetos do batalhão modernista-padrão, como Paul Rudolph, Craig Ellwood e Eero Saarinen, de gerações posteriores. Mas Kahn rompeu com o dogma anti-historicista moderno, exatamente por ser de uma geração anterior, cuja educação era outra.

Formado pela Universidade da Pennsylvania, no verão de 1924 Kahn estava imerso em um ambiente embebido pela doutrina das escolas de Beaux-Arts de Paris. Seus primeiros anos de prática profissional, com o arquiteto francês Paul-Phillipe Cret, formado por Pascal e por Julien Guadet, foram de introdução a um rigoroso método analítico de projeto. Segundo Joseph Rykwert e David Brownlee, a genealogia do espírito questionador do programa de necessidades de Kahn está nos anos em que frequentou o ateliê de Cret. É de sua formação, definida também por sua viagem à Europa, que se pode traçar o respeito às formas antigas, algo que o aparta do dogma moderno dos anos de 1930 e 1940. Da mesma maneira, como era costume dos alunos de arquitetura na virada do século 20, Kahn juntou fundos nos primeiros anos de profissão e partiu para uma excursão, um Gran-prix. Foi a Roma, a Paris, e a sua terra natal. Visitou Riga, Saarema (ilha onde nasceu) e Viena, registrando suas impressões com desenhos e com as aquarelas pelas quais era famoso entre seus colegas de faculdade.

reprodução de Louis I. Kahn, de Romaldo Giurgola e

1962/74
Sher-e-Bangla Nagar, em Dhaka, Bangladesh

reprodução de Louis I. Kahn, de Romaldo Giurgola e

1962/74
Indian Institute of Management, em Ahmedabad, Índia

Victor Eskinazi

1965/72
Phillips Exeter Library, em New Hampshire,Estados Unidos

De volta à América, Kahn enfrentou a Depressão pós-1929, as escassas oportunidades de trabalho e se engajou na produção de habitação durante a Segunda Guerra Mundial. Neste período, Kahn estabeleceu parcerias com arquitetos politicamente engajados, como George Howe, famoso por ter projetado um dos primeiros arranha-céus na Filadélfia, e Oscar Stonorov, emigrado do leste europeu. Nos tempos de crise, o engajamento político de Kahn em causas ligadas à arquitetura o levaram a produções acadêmicas e ao questionamento do modelo de urbanização dos subúrbios. Em projetos como o de Carver Court, com Stonorov, Kahn levanta a atenção da crítica ao subverter a lógica da implantação térrea. O conjunto urbanizado de casas edificadas em dois andares reservava o térreo livre para futuras ampliações, relendo o ideário corbusiano dos pilotis.

Divulgado por Elizabeth Mock na segunda edição da antologia moderna Built in USA, e exposto no MoMA em 1953, Carver Court lança a carreira de Kahn ao reconhecimento nacional e internacional, até então restrita a um círculo de arquitetos ao redor da Filadélfia. Carver Court significou o final da primeira fase de sua carreira. Após um curto espaço de tempo e com poucos projetos, Kahn traz novo significado à sua obra e apresenta a expansão do vocabulário moderno. Dentro desse vocabulário enriquecido, estava a sua investigação sobre a monumentalidade na arquitetura, como estava embebida nos edifícios do passado, sua relação com as instituições humanas mais elevadas, e como a arquitetura moderna tinha fracassado, até então, em expressá-la. Em 1944, escreve um artigo para a coletânea de Paul Zucker intitulado Monumentalidade, no qual defende e define a monumentalidade nos tempos modernos. Discordando de Siegfried Giedion, que assina um artigo na mesma coletânea, Kahn associa a pobreza de repertório moderno à quebra com a história, mas picha aqueles que buscam modelos prontos no passado para reproduzir o monumento moderno. Diz ser impossível inventar a monumentalidade: deve-se descobri-la pela identificação das instituições humanas mais elevadas. Para Kahn, o valor espiritual da religião passou para a ciência, para o símbolo do estado e para o aprendizado. Não à toa, estes são os três programas de atividades que definiriam suas obras de maior expressão a partir da década de 1950, até sua morte, em 1974.

Em 1951, após alguns anos como professor em Yale, Kahn foi chamado para projetar a galeria de arte da instituição. Uma segunda viagem a Roma, em 1951, durante o processo de projeto, deu uma nova e decisiva carga semântica de tectônica clássica que Kahn aplica no projeto. As divisões em faixas finas de pedra, determinando a cadência vertical do conjunto, remetem às ruínas romanas com as quais Kahn se depara pouco antes. O peso do conjunto construído, a força expressiva dos materiais, e a honestidade como se revelam - tijolo, concreto, vidro - em empenas cegas e planos ininterruptos de vidro nas fachadas internas chamou a atenção da comunidade arquitetônica. Jovens arquitetos ingleses o elevam, à revelia, junto com Le Corbusier, como um dos protobrutalistas, ainda que essa estética não tenha sido repetida com muita ênfase, a não ser em seu retorno a Yale para o projeto de arte britânica.

reprodução de Louis I. Kahn, de Romaldo Giurgola e

1966/72
Kimbell Art Museum, em Fort Worth, Texas, Estados Unidos

Na galeria de 1951, vê-se o rigor modular no sistema de vigamento da laje que vence os vãos da sala expositiva e administrativa, formando triângulos, e que reforçam o tema romano, acrescidos pela expertise geométrica trazida pela contribuição de Anne Tyng - então parceira de Kahn e com quem formou a segunda de suas três famílias. Formada em Harvard sob tutela de Walter Gropius, Tyng trouxe um rigor modular ainda mais expressivo do que o de Kahn. Seu traço fica claro em projetos como a torre do centro cívico da Filadélfia, e no detalhamento do sistema estrutural da galeria em Yale. Sua capacidade em assimilar e organizar a forma platônica pode ser vista em projetos como o centro Judeu de Trenton, o centro médico Alfred Newton Richards, na Pensilvânia, e em um dos últimos projetos de Kahn, um memorial ao holocausto judeu em Nova York, sobre o qual me arriscaria a perguntar se Peter Eisenman e Richard Serra não se debruçaram para projetar o memorial (também ao Holocausto) de Berlim.

Tyng não foi a única colaboradora importante para Kahn. Além do já mencionado George Howe, não se pode esquecer de Robert Venturi. A relação de admiração pelo colaborador fica visível nas releituras de componentes tectônicos clássicos, como o arco de alvenaria e a verga de concreto no edifício administrativo de Ahmenabad, e no centro de artes performáticas em Fort Wayne - com a entrada por baixo de uma generosa verga que suporta dois arcos em alvenaria de tijolo, duas janelas tipo fechadura, curiosas tipologias construtivas que perduraram durante um período de sua produção.

O Centro Judeu em Trenton, comissionado por um advogado de Yale, é uma construção simples, erigida em poucos meses e representativa de um momento de amadurecimento e de autoesclarecimento para Kahn. A presença das formas platônicas e tipologias históricas de arquitetura como a planta em formato de cruz - segundo David Brownlee, refere-se à cruz grega, segundo Rykwert, à cruz Suíça - a definição de espaços não por paredes, mas por uma cobertura em formato de pirâmide como na arquitetura clássica romana, apresenta a primeira obra em que Kahn mobiliza com domínio completo formas platônicas que já rondavam seu ideário desde suas viagens às ruínas romanas. Aqui, há novamente a influência de Venturi, então funcionário de Kahn, e de Rudolph Wittkower, com quem Kahn teve contato. A força de Wittkower é clara na modulação e na monumentalidade da abóbada do museu Kimbell, embebida na tectônica greco-romana clássica.

reprodução de Louis I. Kahn, de Romaldo Giurgola e

1967
Proposta para o Memorial para os 6 milhões de judeus, em Nova York

David De Long, um dos biógrafos que assinam a mais detalhada obra sobre o arquiteto, Louis Kahn: in the realm of architecture, oferece uma definição sobre a temática de Kahn nos últimos anos de produção. Relacionando cada instituição humana com seu espaço, David define tipologias onipresentes na obra de Kahn. Primeiro, os espaços de estudo como um misto de ateliê-estúdio-laboratório, onde se eleva a concentração e a disciplina. Suas dimensões são restritas, e devem servir a espaços maiores, de acolhimento e reunião - que, maiores e mais generosos, devem por sua vez acolher aqueles que desejam cruzar o "maior ambiente, aquele que não tem nome tampouco função", que se interessam pela sensação de pertencimento a algo maior, um ideal coletivo. Traçando mais um paralelo com São Paulo, podemos ler o edifício da FAUUSP, concebido por Artigas, da mesma maneira.

No caso do Salk Institute, a promenade a céu aberto retira, segundo o arquiteto, o cientista da mesquinhez de seu foco de pesquisa, recortado e isolado, para a grandeza do saber, maior que racionalidade. A mesma leitura entre espaços é clara na biblioteca Exeter, em seu átrio interno com abertura zenital, conectado com as salas de leitura por grandes aberturas redondas. Mas a composição mais rica entre espaços de serviços e espaços servidos é reservada a seus dois últimos projetos finalizados: Sher-a-Bengla, que Kahn não vive para o ver concluído, e o centro administrativo de Dhaka, na Índia.

Richard Caspole

1969/74
Yale Center for British Art, em New Haven, Connecticut, Estados Unidos

Nesse conjunto de proporções monumentais, encontramos o mais eloquente exemplo da arquitetura em busca de um dos maiores temas do arquiteto: silêncio e luz. As formas platônicas dominam a obra, reforçando a crença no recorte de luz pela ação humana, para Kahn, força motriz que separa a natureza da arquitetura - e, neste ponto, distingue-se da crença no ideal de beleza naturalista de Wright. As monumentais janelas redondas da biblioteca de Exeter afirmam a presença ainda mais marcante nestes projetos. Nesses projetos, Kahn demonstra seu investimento dialético no saber e no racionalismo. Se de um lado deixa-se penetrar pelo orientalismo indiano e tange as bordas do misticismo e de saberes orientais, por outro reforça sua crença no racionalismo, reafirmando suas formas platônicas, cheias e vazias, reproduzidas pelos espelhos d'água. No momento em que atinge o auge de sua prática, revela os limites de seu discurso: seriam estas as formas que trazem a transcendência ao espírito humano, frente à sensação de que já estão datadas? Os valores seriam os mesmos para a Filadélfia, um dos berços da intelectualidade norte-americana, do que para Dhaka, em Bangladesh? E até que ponto seria o Estado, a universidade e a ciência, as instituições humanas a elevar? Críticos de seu trabalho, como Tafuri e Del Co questionam a validez dessas instituições dentro da sociedade capitalista (mas seria o caso de nos rendermos ao shopping center?). Já Frampton reconhece o valor inerente da tectônica, do simbolismo do lavoro e do esforço humano coletivo. O que fica evidente, dentro do panorama contemporâneo, é a contribuição da obra de Kahn para a ressignificação dos templos contemporâneos como tipologia de espaço ainda válida, eminentemente representativos das sociedades para as quais foram concebidos.

BIBLIOGRAFIA
David B. Brownlee, David G. De Long. Kahn: in the realm of architecture. Los Angeles, The Museum of Contemporary Art, 1997
Willian S. Huff. Kahn and Yale. JAE, Vol. 35, No. 03 - 1982 - pp. 22-31
Louis I. Kahn. Conversation with students: Architecture at Rice 26. New Jersey, Princeton Architectural Press, 1998
Joseph Rykwert. Louis Kahn. New York, Harry N. Abrams, 2001
Robert Twombly (Ed.). Louis Kahn: essential texts. New York, Norton, 2003

LUIZ FLORENCE é arquiteto formado pela FAUUSP em 2004 e mestrando pela mesma instituição. Em 2006 fundou junto com colegas de faculdade o coletivo de arquitetura 23 Sul (www.23sul.com.br)

 

Fonte:

http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/222/artigo266283-1.aspx

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