É a reta que faz ver a curva: a análise da forma e da função em Niemeyer, por Rodrigo Queiroz


por Rodrigo Queiroz
Edição 226 - Janeiro/2012

É a reta que faz ver a curva
Estive pela penúltima vez com Oscar Niemeyer em 21 de março de 2007. Na conhecida cobertura do edifício Ypiranga, em Copacabana, conversamos sobre a proposta da exposição dos desenhos dele, pertencentes ao acervo da biblioteca da FAUUSP.
Propus expô-los no Salão Caramelo do edifício da FAUUSP, projeto de Vilanova Artigas. Apresentei uma planta, além de fotografias e perspectivas. Falei sobre o intuito da exposição e sobre aquele espaço que ele visitara pela última vez para uma conferência em 25 de novembro de 1995, onde elaborou os desenhos que, pelo menos naquela proposta de exposição, poderiam retornar ao lugar de onde surgiram.
Sugeri a disposição de um painel horizontal, de curvatura oscilante e distendida, que percorreria todo o comprimento do Salão Caramelo. A planta e a perspectiva mostravam o painel à frente de dois planos cegos e suspensos de concreto aparente, em segundo plano, voltados para o espaço onde os desenhos seriam expostos.
Niemeyer observou com atenção os desenhos durante alguns segundos e rompeu o silêncio dizendo: "A curva é importante, mas a reta também é importante, às vezes mais importante que a curva. Sem a reta, a curva não aparece, você não vê a curva. A reta faz a curva aparecer. É a reta que faz ver a curva".
O arquiteto carioca fez esse elogio à reta como comentário ao contraponto estabelecido entre a ortogonalidade dinâmica do espaço interior do edifício da FAUUSP e a sinuosidade irregular do painel de exposição.




Com esse comentário, Niemeyer chama a atenção para a importância de um procedimento compositivo utilizado com frequência pelo arquiteto: o sentido de unidade e equilíbrio dado pela relação de contraste e consequente complementariedade entre um elemento maior, usualmente ortogonal, que se presta como fundo para um elemento menor, de exceção, marcado por um contorno curvilíneo, seja do perfil, seja do perímetro. Essa típica relação "figura-fundo", estruturada por um espaço composto por formas curvas e ortogonais, constitui uma característica presente na maioria dos projetos de Niemeyer.
De modo geral, a relação entre forma e função para Niemeyer obedece a alguns parâmetros conhecidos: o programa definido por ambientes repetidos, compartimentados e de uso cotidiano invariavelmente é agrupado no interior de uma forma ortogonal, que pode assumir a configuração de uma lâmina horizontal, uma torre, ou até uma plataforma rente ao solo. Já o programa de uso coletivo e eventual, dado por espaços de grande metragem, como salões de exposição e auditórios, assume um perfigestual, e será a partir da imagem dessa forma curva, disposta em primeiro plano, que o projeto será reconhecido.
Foram várias as pesquisas que se dedicaram a investigar o vocabulário formal de Niemeyer. Autores como Marco do Valle, Edson Mafhuz e Luiz Recamán já apontaram para a existência de um conjunto fechado de formas facilmente identificável na obra do arquiteto carioca, como abóbada, marquise sinuosa, lâmina curva, cobertura côncava, cilindro, calotas, prismas, além das conhecidas formas tangentes ao solo.
A maioria desses elementos é extraída do vocabulário plástico de Le Corbusier e apresentada pela primeira vez, de modo autônomo, no projeto do conjunto arquitetônico da Pampulha em Belo Horizonte (1940/1943).




A relação espacial "figura-fundo" entre as formas ortogonais (ambientes administrativos, destinados ao trabalho) e as formas expressivas (espaços com pouca compartimentação e de uso esporádico) é estabelecida a partir de um nítido senso de hierarquia. Nesses projetos, tanto as visuais quanto o promenade arquitetural coreografado no desenho de Niemeyer constituem uma mirada em típica perspectiva linear, com ponto de fuga central, com as elevações principais dos edifícios dispostas em planos paralelos entre si, mas nunca convergentes em direção ao ponto de fuga. Em seus desenhos, a posição do observador, frontal ao plano da arquitetura, demonstra o desejo do arquiteto por uma apreensão em projeção ortogonal, na intenção de preservar a inteligibilidade da forma e do espaço em sua integridade.



Em texto recente, a professora Ana Luiza Nobre reconhece em Niemeyer a predisposição por um desenho e um espaço constituídos por planos em projeção ortogonal, sem profundidade, paralelos ao plano do papel e estruturados pelo vazio. Na opinião da autora, "concebida como uma caixa em perspectiva, a obra de Niemeyer exige um certo distanciamento, do qual depende, afinal, o prazer do olhar e a satisfação do fruidor (daí o recurso recorrente a rampas e espelhos d'água, a fixar um percurso que define pontos de vista que com frequência tendem à frontalidade). É o contorno, e não o detalhe, que conta antes de tudo, e é aí que está, ao mesmo tempo, o ponto mais forte e crítico dessa arquitetura, tão decididamente recortada do meio em que se insere".
Com o entendimento dos procedimentos que equacionam questões funcionais, formais e espaciais sob um gesto unitário, poderíamos chegar à conclusão imediata de que é aparentemente possível configurar um método para a análise e a compreensão da obra de Niemeyer a partir do reconhecimento das seguintes operações: 1) o modo como os elementos do programa são agrupados; 2) o uso de um conjunto fechado de formas; e 3) as estratégias para a organização dessas formas no espaço.
Se é possível identificar com certa clareza nos projetos do arquiteto seus procedimentos funcionais, formais e espaciais, afinal, o que há de surpreendente na obra desse que é tido como um dos maiores artistas do século 20?
Reconheço que dediquei minhas pesquisas de pós-graduação ao estudo da obra de Niemeyer na tentativa de investigar a suposta pedagogia do gênio. De fato, a obra do arquiteto permite essa assimilação. Porém, o entendimento dos procedimentos funcionais, formais e espaciais é apenas uma das chaves possíveis para uma aproximação à inteligência de Niemeyer.
Por outro lado, se todos esses procedimentos fossem absolutamente decifráveis, sua obra estaria sujeita a uma interpretação que a reduziria ao limite do previsível. O contrário também se aplica. Se seus projetos fossem caracterizados por uma diversidade infinita, uma subjetividade desinteressante inviabilizaria todo e qualquer tipo de análise.
A configuração da relação entre forma e vazio, apesar de tributária a determinados procedimentos clássicos de ordenamento do espaço, demonstra a inegável adesão de Niemeyer ao projeto moderno. O desejo por uma espacialidade abstrata e supostamente infinita permeia o ideário da arte moderna desde a estratégia cubista de supressão da profundidade linear da pintura e a consequente aproximação do plano da arte ao plano real. A formulação da hipótese de um espaço abstrato opõe-se aos códigos sociais e estéticos que regem a produção da cidade tradicional, configurada por uma arquitetura que representa o desejo burguês de bem-estar, acúmulo e segurança.




O projeto da arquitetura moderna não se reduz ao papel compositivo de um objeto condicionado à lógica da cidade tradicional, como uma forma abstrata dissociada de sua correspondente superfície planificada, mas só se constitui enquanto uma postulação eminentemente urbana. O projeto de um espaço imune à história e à natureza, invariavelmente, realiza-se como uma experiência apartada do presente, condição que atesta a paradoxal incompatibilidade de sobreposição do espaço moderno no espaço urbano real. Isso explica o movimento de fuga do espaço moderno que se afasta do presente em busca da superfície ideal para a constituição do futuro, raciocínio que o condena à própria condição de projeto.
A proposição de um espaço novo, sem a hierarquia da cidade real, assume configurações distintas nas pranchetas de diferentes arquitetos modernos: a suspensão da forma sobre pilotis em Le Corbusier e a consequente liberação da superfície do chão; ou a anulação da volumetria em Mies van der Rohe, seja pela transparência total, seja pela eliminação das arestas que constituem o volume, transformando o projeto em uma organização aberta de planos verticais e horizontais cujas arestas não se tocam.




O espaço dado pela relação condicional entre forma abstrata e superfície planificada, ao mesmo tempo em que alinha Niemeyer às vanguardas, é procedimento que confere a autonomia da produção do arquiteto com relação a esse quadro referencial.
A organização de um espaço ortogonal em planta, constituído de formas retas e curvas, porém exatas, não gestuais, identificadas na pintura, na arquitetura e no urbanismo do período purista de Le Corbusier, assume em Niemeyer uma nova configuração. Porém, as formas de Niemeyer, apesar de gestuais, não aparecem ingenuamente soltas no espaço; ao contrário, preservam uma relação ortogonal entre si.
A forma moderna de Niemeyer não é herdeira da matriz geométrico-abstrata das vanguardas. O movimento da curva é o registro gráfico e espacial (desenho e forma) de um gesto humano que em nada lembra as formas ortogonais que guardavam em si uma suposta predisposição à serialização proveniente da indústria. Nesse sentido, a relação forma-espaço de Niemeyer põe em xeque o homogêneo ambiente standard proposto por determinadas vertentes do projeto moderno, que aproxima arte e vida sob o signo do espaço funcionalista.
A arquitetura de Niemeyer reformula a dimensão simbólica da forma arquitetônica sem se deixar seduzir por formalismos alegóricos e figurativos que ativam a memória de imediato. O que espanta em Niemeyer é justamente essa desconcertante habilidade em encontrar o movimento essencial que define a forma, não como um volume, mas como um perfil que preserva o movimento do gesto que o originou.
Naquela que talvez seja a análise mais importante já feita sobre a obra de Oscar Niemeyer, a historiadora Sophia Telles aponta para a relação entre o desenho e o campo do papel como uma chave para a compreensão da estratégia formal do arquiteto. Segundo a autora, a superfície vazia do papel "(...) talvez seja o espaço deserto que quer fazer respirar em torno de seu desenho. Assim, um traço solto acaba por se constituir a única referência de escala, a linha do horizonte".
O argumento de Sophia Telles faz pensar sobre a relação condicional entre forma e espaço mediada por um vazio cuja dimensão dilui a profundidade da forma, apreendida em frontalidade, como um contorno, aproximando-se, assim, do próprio desenho do arquiteto.
No desenho de Niemeyer e na visada em projeção ortogonal, construída por um posicionamento determinado no próprio desenho, a forma se reduz a um contorno ora tangente, ora aderente ao solo. O desejo por uma superfície visualmente desimpedida, sem compartimentação, faz com que a forma toque a linha do chão ou se acomode ao solo, a ponto de nossa percepção reconhecê-las como uma continuidade da própria linha do chão. Sendo assim, a imagem desse plano distante é definida por tangências e saliências. Essa apreensão visual da obra de Niemeyer estabelece uma relação de correspondência com a fatura de seu próprio desenho: uma linha em movimento contínuo, que parte e retorna à superfície do chão.




Se Corbusier suspende a forma, permitindo que a linha do chão passe por debaixo dela, se Mies converte a volumetria em transparência e em plano, Niemeyer radicaliza, e define espaço como uma superfície que é a própria arquitetura. Suas formas inexistem dissociadas do vazio que as resguardam de um indesejável, porém inevitável, presente desprovido da ordenação moderna.
Essa continuidade espacial, comum na obra de Niemeyer, estabelece uma relação condicional entre forma e superfície sem precedentes na arquitetura moderna: a linha do chão ascende em diagonal rasa, transforma-se na espessura da rampa, em seguida retoma sua horizontalidade paralela e rente à linha do chão, e continua em movimento até definir o contorno da forma em sua totalidade.
O olho não desvia, não se deixa escapar dessa trajetória ininterrupta. A superfície da forma se mantém integral, resistente a qualquer tipo de composição visual. Inexiste a janela como abertura definida pela mera subtração de matéria do plano, resultando no jogo gratuito entre opacidade e transparência, luz e sombra. Ao expandir a abertura ao limite de um plano recuado com relação à projeção do contorno, Niemeyer deixa saltar aos olhos somente o perfil da forma, cuja esbeltez corresponde à espessura da linha contínua que identifica seu desenho.
O espaço proposto por Niemeyer é constituído de um sentido de leveza que ultrapassa a enigmática suspensão dessas silhuetas que apenas tocam o chão. Distribuídas ao redor do planeta, na cidade e na natureza, suas obras apontam para um destino possível, que repousa no pertencimento pleno apenas do belo e do essencial.

[1] [2] Sede do Partido Comunista Francês, Paris (1963)
[3] Escola Estadual Milton Campos em Belo Horizonte (1954)
[4] Universidade de Constantine, Argélia (1969)
[5] Centro Cultural Oscar Niemeyer, em Goiânia (2006)
[6] Quartel General do Exército, em Brasília (1968)
[7] Congresso Nacional de Brasília (1958)
[8] Conjunto do Parque Ibirapuera, em São Paulo (1951/1954)
[
9] Memorial da América Latina, São Paulo (1986)
[10] Conjunto do Parque Ibirapuera, em São Paulo (1951/1954). Vista do acesso original - Palácio das Artes (Oca) e auditório (1951/1954)
[11] Conjunto do Parque Ibirapuera, em São Paulo. Vista do novo acesso proposto em 2003 por ocasião da construção do auditório


Imagens
1 Reprodução de: PHILLIPPOU, Styliane. Oscar Niemeyer: curves of irreverence. New Haven/London: Yale Press, 2008
2/4/5/6/8/9 Leonardo Finoti
3/10 Reprodução de: PAPADAKI, Stamo. Oscar Niemeyer: works in progress. Nova York: Rheinhold Publishing, 1956
7 CORONA, Eduardo. Oscar Niemeyer: uma lição de arquitetura. São Paulo: FAUUSP/FUPAM, 2001
11 SCHARLACH, Cecília (org.) Oscar Niemeyer: a marquise e o projeto original do Parque do Ibirapuera, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006

Bibliografia
BARROS, Luiz Antônio Recamán de. Oscar Niemeyer: forma arquitetônica e cidade no Brasil moderno. Tese de douturado: FFLCHUSP, 2002
MAHFUZ, Edson. O clássico, o poético e o erótico. Porto Alegre. Editora das Faculdades Integradas do Instituto Ritter dos Reis, 2002
NOBRE, Ana Luiza. Como se fosse fácil. In http://www.blogdoims.com.br/ims/oscar-niemeyer
QUEIROZ, Rodrigo. O desenho de um processo: os estudos de Oscar Niemeyer para o edifício do Congresso Nacional de Brasília. Dissertação de mestrado: ECAUSP, 2003
TELLES, Sophia S. Arquitetura moderna no Brasil: o desenho da superfície. Dissertação de mestrado: FFLCHUSP, 1988
VALLE, Marco Antônio Alves do. Desenvolvimento da forma e procedimentos de projeto na arquitetura de Oscar Niemeyer (1935/1998). Tese de doutorado: FAUUSP, 2000

Rodrigo Queiroz é arquiteto, professor do departamento de projeto da FAUUSP e pesquisador de arquitetura moderna

Fonte: http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/226/artigo276001-1.aspx

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