Lina Bo Bardi: Em busca de uma arquitetura pobre

Por Zeuler Lima

Edição 249 - Dezembro/2014

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Lina Bo Bardi passava longas horas refletindo e fazendo anotações antes de produzir coloridos desenhos à mão para seus projetos. Ela não procurava, como muitos arquitetos, a justa forma, mas sim a simplicidade arquitetônica e uma autenticidade cultural que pudesse ser coletivamente compartilhada. Mais do que uma confiante arquiteta modernista, ela foi uma cética projetista e pensadora moderna. Em vez de valores universais, seu trabalho projetual e sua escrita revelam o papel que a pluralidade, a alteridade e a instabilidade desempenham na constituição da modernidade.

Ainda que seu trabalho tenha sido prolífico em várias áreas criativas, incluindo a realização de inúmeros projetos arquitetônicos, sua obra construída é pequena. No entanto, os menos de 20 edifícios que ela viu serem erguidos deixaram significativa contribuição para a arquitetura brasileira e mundial. Lina Bo Bardi procurou abraçar as contingências dos lugares em que trabalhou e a espontaneidade da vida cotidiana. Ela passou a própria vida em trânsito, navegando entre locais e visões de mundo distintos. Suas ações e seu pensamento teceram uma trajetória por dentro e por fora da cultura moderna, materializada na comunicação entre inovação e tradição, abstração e realismo, racionalismo e surrealismo, naturalismo e história, assim como entre sentimentos melancólicos e impulsos revolucionários.

Suas obras edificadas, frequentemente de caráter ambivalente, resultaram de processos de negociação complexos e foram concebidas de forma híbrida. Essa abordagem esteve presente desde o início de sua presença no Brasil, manifestada em um de seus primeiros artigos - hoje pouco lembrados - para a revista Habitat. Seu contundente ensaio-manifesto Bela criança de janeiro de 1951 (Habitat no 2) colocava-se entre o debate internacional sobre a arquitetura moderna brasileira e a hegemonia dos princípios corbusianos preconizados pela Escola Carioca. O artigo enaltece a arquitetura espontânea e a casa rural assim como o fazer leigo, estabelecendo importantes premissas de projeto.

Seu primeiro projeto construído, a casa Bardi (1949/1952), que veio a ser equivocadamente chamada de Casa de vidro, revela hoje pouco das preocupações do seu artigo. No entanto, o plano original foi concebido segundo uma lógica racionalista associada a materiais não industriais como uma estrutura tosca de madeira e fundações de pedra. Inicialmente idealizado para ser uma residência temporária para artistas do Instituto de Arte Contemporânea do Masp, o projeto passou a servir ao ambicioso esquema comercial do loteamento do Morumbi. Juntamente com a casa que Oswaldo Bratke - arquiteto que concebeu o plano urbanístico - projetou para o casal Maria Luísa e Oscar Americano, a casa dos Bardis serviu de showroom para o novo bairro paulistano, inaugurando o modelo das "case study houses" californianas na cidade. A adaptação do projeto inicial a esse modelo deu origem à aparência de uma casa transparente, dramaticamente situada sobre as colinas do vale do rio Pinheiros. Apesar disso, uma análise mais atenta revela um volume posterior de serviços sólido e assentado sobre o terreno com poucas aberturas, à semelhança de uma casa rural, que revela o caráter conceitual e formalmente híbrido da casa Bardi.

Os outros dois projetos residenciais que Lina Bo Bardi viu construir entre 1958 e 1964 são menos conhecidos e divulgados, mas representam fielmente as suas buscas estéticas e conceituais na época. O primeiro deles é o projeto para a casa Valéria Cirell de 1958, ao qual Lina Bo Bardi acrescentou uma pequena casa de hóspedes cilíndrica em 1964. O outro projeto, iniciado em 1958 e completado em 1964, é a casa do Chame-Chame, em Salvador, Bahia, demolida em 1986 para dar lugar a um edifício de apartamentos. Ambas se caracterizam pela experimentação, quase literal, de Lina Bo Bardi com os elementos espontâneos e vernáculos preconizados em seus artigos sobre arquitetura para a revista Habitat.

A casa Cirell se encontra a apenas 300 m da casa Bardi, porém a distância conceitual entre as duas é considerável. Em vez do invólucro transparente emoldurando a vegetação ao redor da casa envidraçada, Lina Bo Bardi projetou paredes sólidas de alvenaria que envolvem um interior surpreendentemente claro. Aninhada no terreno pendente, a casa Cirell consistia originalmente em dois blocos rodeados por uma estrutura de madeira, deck e varanda, originalmente com telhados de palha, e colunas de tronco de árvore assentadas sobre bases de concreto cobertas com pedras. Já as poucas imagens remanescentes da casa do Chame-Chame, construída em Salvador, mostram um edifício de dois andares, com paredes circulares acomodadas sobre a topografia. Em ambos os casos, são dominantes as referências ao organicismo de Frank Lloyd Wright e ao naturalismo de Antoni Gaudì, cujos trabalhos ela analisara, na época, em sua tese Introdução propedêutica e em suas palestras em Salvador.

As casas Cirell e do Chame-Chame representam tentativas pioneiras de materializar propostas independentes que Lina Bo Bardi vinha desenvolvendo teoricamente no final da década de 1950. E foi justamente assim que ela abordou o projeto para a construção da sede permanente do Masp na avenida Paulista, em São Paulo. Lina se mantinha leal à ideia de que, para superar a crise da arquitetura moderna, os arquitetos deveriam adotar a economia de meios, a modéstia, a referência à natureza e a responsabilidade para com usuários e o lugar. E foi assim que, por muito tempo, insistiu em que o volume suspenso do Masp fosse opaco e recoberto com plantas e seixos nos fechamentos verticais. Foi a limitação construtiva dada a pesada carga de tal fechamento que levou gradualmente à alternativa de caixilhos de vidro hoje existente e que apagou a imagem prevista por Lina Bo Bardi para o museu.

As ações e pensamentos de Lina teceram uma trajetória por dentro e por fora da cultura moderna, materializada na comunicação entre (...) sentimentos melancólicos e impulsos revolucionários

Concebido entre 1957 e 1968, o Masp se situa num terreno anteriormente ocupado pelo histórico Belvedere do Trianon, demolido para construir a sede da Fundação Bienal de São Paulo, que acabou no Parque do Ibirapuera. Do projeto anterior, Lina Bo Bardi respeitou a restrição urbanística que impedia que a vista da cidade viesse a ser obstruída. Para elevar parte do edifício do solo, ela lançou mão de um estudo seu anterior, irrealizado, para um museu na praia da cidade de São Vicente, SP (1951), que derivava do projeto de Mies van der Rohe para o Crown Hall em Chicago. Ao transpor essa ideia para a avenida Paulista, Lina Bo Bardi reduziu a estrutura principal a apenas dois pórticos longitudinais, fazendo com que o edifício permanecesse suspenso, deixando o espaço do terraço intocado por colunas. O vão de 74 m, sustentado em realidade por um robusto par de vigas no interior do volume suspenso, reconfigurou o antigo belvedere. O terraço urbano associa as duas partes comunicantes do museu: a base semienterrada, de caráter cívico e pedagógico, e o volume elevado que propunha uma visão museológica não hierárquica e socializante na galeria e na coleção permanente do museu.

Durante a construção do Masp, Lina Bo Bardi teve a oportunidade, entre 1960 e 1964, de dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia, que era uma extensão dos interesses culturais de Assis Chateaubriand no Nordeste. Durante esse período, ela se propôs a criar uma escola de desenho industrial alternativa. Ao converter o conjunto colonial do Unhão em um centro cultural e educativo, Lina reservou o solar para a criação do Museu de Arte Popular, dedicado a promover a continuidade entre práticas criativas tradicionais e industriais. Ainda que este projeto tenha tido vida curta, interrompido pelo golpe militar de 1964, o edifício ainda guarda uma das obras exemplares de arquitetura concebidas por Lina Bo Bardi: uma escada helicoidal construída a partir um sistema de encaixes que associa o racionalismo moderno à construção de carros de boi.

Um dos desafios no entendimento do sentido da obra de Lina Bo Bardi se deve ao fato de que ela operou tanto dentro do "establishment" cultural quanto fora dele, negociando com valores nem sempre em concordância com suas aspirações. Seu projeto para a Igreja do Divino Espírito Santo (do Cerrado) em Uberlândia, MG, iniciada em 1976, talvez seja o projeto que se aproximou radicalmente das suas procuras, que associavam referências múltiplas aos vernáculos romanos e rurais, romantismo revolucionário e simplicidade construtiva. Juntamente com a Capela Nossa Senhora dos Anjos de 1978, em Vargem Grande Paulista, SP, a Igreja do Cerrado é fiel aos seus ideais. Ela se orgulhava do fato de que esse projeto fosse resultado do esforço combinado entre a população voluntária que ajudou na construção e da equipe de projetistas.

Simultaneamente à construção daquelas pequenas igrejas, Lina Bo Bardi realizou a sua obra mais complexa e paradigmática: o Sesc Pompeia, em São Paulo, que representa sua aspiração a uma arquitetura definida como espaço vivido. No Sesc, Lina Bo Bardi encontrou seu melhor mecenas e cliente. Neste projeto, consolidou muitos dos objetivos que tinha perseguido desde sua chegada ao Brasil, 30 anos antes. O conjunto lhe ofereceu a oportunidade de associar diversas metodologias de projeto, formas de expressão artística, práticas construtivas e trabalho colaborativo.

O programa cultural e de lazer, que ocupa, junto com a administração do centro, o conjunto da fábrica, teve por objetivo animar os espaços dos galpões com um salão de exposições, uma biblioteca suspensa, restaurante, teatro e ateliês de arte e artesanato com mínima interferência no espaço original e nos telhados do antigo edifício. Toda forma e todo uso no conjunto da antiga fábrica pretendiam exaltar as primeiras observações que Lina tinha feito nas suas visitas iniciais aos galpões.

Como no caso do Masp, o projeto dos ginásios enfrentava uma significativa limitação urbanística. A única área do conjunto capaz de receber novos edifícios se localizava ao longo do córrego das Águas Pretas, que cruza o terreno como corredor de proteção ambiental. A separação do ginásio em duas torres interligadas por sete pontes de concreto protendido responde àquela limitação e dá ao conjunto seu aspecto altivo. Simultaneamente, os materiais e a geometria simples desses edifícios deixaram expostos os meios e as técnicas utilizados na construção.

Os procedimentos de projeto para o Sesc Pompeia reafirmaram as escolhas estéticas e conceituais pela simplificação nos projetos anteriores de Lina Bo Bardi. Ela definia sua noção de "arquitetura pobre" não como uma expressão de privação econômica, mas como o emprego de meios simples que via no trabalho produzido pelas mãos habilidosas do povo brasileiro. Os gestos singelos que trazem à luz os aspectos desenhados, pictóricos do projeto contrastam com a escala e a crueza sublimes do conjunto.

Após a conclusão do projeto do Sesc Pompeia, ao final da vida, Lina Bo Bardi realizou vários projetos voltados para a esfera pública e cultural. Entre tais trabalhos destaca-se o conjunto do Pelourinho em Salvador entre 1986 e 1989. Seu retorno à Bahia se deveu a um plano de revitalização urbana de caráter socioantropológico, para o qual Lina desenvolveu projetos de habitação e instituições culturais voltados a compatibilizar a manutenção da população existente com crescentes atividades turísticas na área central histórica.

Lina Bo Bardi e sua equipe organizaram o projeto em dois grandes conjuntos consecutivos: a conversão dos antigos edifícios fabris para programas culturais e de lazer entre 1977 e 1982, e um novo bloco para atividades esportivas projetado e construído entre 1982 e 1986. O reconhecimento dos usos existentes era para Lina Bo Bardi o aspecto mais importante a ser abraçado pelo projeto do Sesc.

Associada a pesquisadores da prefeitura e ao arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé), Lina Bo Bardi concebeu um sistema simples e flexível de pré-moldados em ferro-cimento. Tal sistema serviu para estabilizar edificações fisicamente comprometidas e criar novos edifícios que não mimetizam os prédios históricos e, ao mesmo tempo, estabelecem uma linguagem comum e contemporânea ao conjunto urbano-arquitetônico. Destacam-se as obras residenciais com seu inusitado restaurante Coaty para a ladeira da Misericórdia e a Casa do Benin, construída para promover o trabalho etnográfico de Pierre Verger e a compreensão dos intercâmbios culturais entre Brasil e África. Apesar da grande relevância cultural e social de tais projetos, sua materialização foi politicamente comprometida, como é comum no Brasil.

Despreocupada com tais contingências e contradições conceituais, Lina Bo Bardi justapôs realidades e valores diferentes - e às vezes opostos - em sua prática. Ao assim fazer, ajudou a revelar aspectos e conflitos que o processo de modernização cultural e social tende a ocultar. Por baixo da aparência incomum de sua arquitetura, manifestam-se significativas preocupações políticas e éticas. Em vez de abraçar uma modernização arquitetônica sem restrições, Lina foi sensível à simplificação técnica e aos valores nacional-populares. Apesar de seu elogio à espontaneidade da natureza e da cultura leiga, Lina permaneceu ligada a princípios do Iluminismo, tais como a lógica racional, o conhecimento científico e o livre arbítrio.

Lina Bo Bardi valorizou a improvisação e a autenticidade das pessoas simples, que muitas vezes viu como despojadas de meios materiais, mas ricas em capacidade criativa. Para ela, a humanidade e suas lutas coletivas eram mais importantes que as aspirações individualistas, uma crença que levou para primeiro plano, especialmente na maturidade. Ciente de tais ambições e escolhas - e também de seus impasses, Lina Bo Bardi se definia como uma arquiteta romântica, mas não sentimental.

ZEULER R. M. DE A. LIMA é professor doutor na Washington University in Saint Louis, School of Design and Visual Art

Fonte: http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/249/artigo334011-1.aspx

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