Pitanga do Amparo e a ruptura de fronteiras, por Edite Galote Carranza e Ricardo Carranza

Por Edite Galote Carranza e Ricardo Carranza
Edição 234 - Setembro/2013


A ruptura de fronteiras e a associação de novos conceitos ao projeto têm sido uma constante na atuação profissional de Pitanga do Amparo

ARQUITETURA + ARQUETÍPICA Na Grécia Clássica, fonte da cultura ocidental, o arquetípico arquiteto - do grego arkhitektôn, seria um exímio mestre de obras encarregado de erigir a imagem do Estado, mas também, necessariamente, aquele que detém os saberes para a concepção da obra. O conceito só se modifica na modernidade, quando a sociedade exige respostas adequadas a novas questões, como o problema da habitação mínima ou das relações homem-máquina. Desde então, o arquiteto torna-se um profissional multidisciplinar ou especializado com base em um feixe de possibilidades: universidade, instituto de pesquisa, administração pública, mercado imobiliário e desenho industrial são alguns exemplos de áreas de atuação do profissional especializado e, ao mesmo tempo (e paradoxalmente), do não especializado.
Nesse contexto, Pitanga do Amparo é o arquiteto contemporâneo por excelência, pois a ruptura de fronteiras e a associação de novos conceitos ao projeto têm sido a constante da sua atuação profissional, ao mesmo tempo em que pertenceu à "Geração AI-5" de jovens sensíveis às mudanças culturais e contraculturais de seu tempo.

1975 - Casa Célio Vieira, em São Paulo

desenho do arquiteto / Paulo Scarpello

Luiz Antonio Pitanga do Amparo (1951-) ingressou na FAUUSP em 1969, em um contexto de particularidades contundentes: primeira turma do curso em um edifício que seria um vetor das relações humanas, projeto pedagógico discutido desde 1962 a ser confrontado com a prática, afastamento de Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Jon Maitrejean, e prisão de Rodrigo Lefévre e Sergio Ferro por questões políticas. Apesar do momento histórico crítico, Pitanga do Amparo sofreu a influência dos professores Sérgio Ferro, Rodrigo Lefévre e Flávio Império, mas, sobretudo, da ambiência libertária indutora de um comportamento não convencional. Ele recorda as aulas concorridas de Sérgio Ferro, em que a lista era liberada e a audiência permanecia inalterada; ou os jogos de Flávio Império, envolvendo experiências sensoriais e corporais no espaço do Salão Caramelo.

1976 - Agência Itaú Ramos, no Rio de Janeiro
desenho do arquiteto / Pitanga do Amparo

ARQUITETURA + ARTE Concluindo o curso em 1973, Pitanga do Amparo ingressou formalmente no mercado de trabalho em 1974, pela Itauplan - empresa do Banco Itaú, implantada no período do milagre econômico, com cerca de 700 funcionários, e que se destinava à demanda das próprias obras.
Na equipe liderada pelo arquiteto João Eduardo de Gennaro, Pitanga do Amparo participou de projetos complexos como o Edifício Comercial São Cristóvão, no Rio de Janeiro, de 1975, com área de 17 mil m² e projetos de agências bancárias.
As agências são a primeira fase da produção de Pitanga do Amparo. Observando-se o conjunto, é possível considerar que se trata de edifícios projetados a partir de volumes prismáticos, o que pode ser captado pela retina. Não se trata, entretanto, de eleger a volumetria capaz de abrigar o programa, mas da intersecção de planos que gera uma solução plástica articulada às funções, o que só pode ser compreendido pela via do intelecto. O conceito de Planitas, do artista russo Kazimir Malevich (1878/1935), foi adotado como instrumento projetual por Pitanga do Amparo, que ilumina a compreensão desses projetos, ou seja, arquitetura + arte, significando matéria objetiva regida por um princípio artístico subjetivo.
Já em 1975, Pitanga do Amparo força os limites padronizados da Itauplan - é o caso da Agência Cancela, com forro de alumínio na cor amarelo-pitanga; e dutos e difusores, do sistema de ar-condicionado, aparentes e pintados na cor vermelha. A ousadia foi aceita e Pitanga do Amparo materializava seu caminho de inventividade crítica aliada a uma abordagem artística. Surgia um novo conceito para o espaço bancário. Instalações ascendiam a uma escala de expressão plástica próxima da arquitetura high-tech e do psicodelismo; ao mesmo tempo, ultrapassando, a nosso ver, a tendência brutalista paulista de materiais e instalações também aparentes, mas objetivando a serialização industrial.
No mesmo ano, projetou um mural para a Agência Itacema. De expressão condizente às artes gráficas e ao cinema experimental superoitista, a obra constituía-se de uma série de ondas por toda uma parede, vidro, guarita, refletindo-se no piso de granito polido. Com o arquiteto e artista plástico Takashi Fukushima (1950-), também da Itauplan, realizaram um happening defronte ao mural antes da inauguração da agência, cujo registro é o filme Super 8 - o vampiro da pedra preta. O mural foi censurado. Eram os anos de chumbo.
A última ação criativa de Pitanga do Amparo na Itauplan foi com o projeto para a Agência Ramos (1976). Dutos aparentes do sistema de ar-condicionado - como uma aranha escultórica -, e balcões de fórmica, foram concebidos na cor vermelha. Detalhes do projeto foram estrategicamente editados e só verificados após a execução da obra.
O arquiteto Pitanga do Amparo, então, encerra sua colaboração com a Itauplan.

1981 - Casa Takao Mimura, em São Paulo
croqui do arquiteto

Foto: Jorge Butsuem
Dentre as propostas de Pitanga do Amparo, que contrariavam o bom senso corporativo, a Agência Afonso Brás (1975/1976) talvez tenha sido o primeiro projeto bancário no Brasil a considerar de forma objetiva o binômio arquitetura + sustentável. Projeto fundamentado no ecologismo, que despontara no cenário internacional a partir da década de 1960, encontrou ressonância na biotectura, teoria do arquiteto alemão Rudolph Doernach, com suas palestras em São Paulo em 1976. A agência naturalmente não saiu do papel, pois a materialização de uma ideia nova dependeria de uma mentalidade mais livre.
Na Agência São Sebastião Banespa, 1980, Pitanga do Amparo utiliza, com total domínio da linguagem que desenvolvia desde os primeiros trabalhos, materiais e técnicas construtivas empregadas de forma direta, resultando em uma obra de expressão plástica de notável unidade e transparência. É interessante observar a atenção dedicada a certos detalhes, muitas vezes considerados menores, como bancadas de sanitários ou uma escada de serviço - mas não há grande arquitetura sem pequenos detalhes.

ARQUITETURA + SUSTENTÁVEL
A casa Célio Vieira (1975/1978) teve a condicionante de um lote estreito que, associado às edificações vizinhas de dois pavimentos, contribuiu para o partido intimista e a cobertura abrigo, um plano inclinado que atende a duas premissas fundamentais do projeto: iluminação zenital e biotectura.
O programa foi implantado em quatro níveis onde as funções se inter-relacionam de forma não linear. No primeiro, estão a sala de estar e a suíte do casal; no segundo, a sala de almoço, cozinha, lavanderia, dependências de empregada e salão de festas; no terceiro, sala íntima e, no último nível, três dormitórios e banheiro tripartite. Os espaços em níveis e alvenarias que não tocam a cobertura favoreceram as visuais internas, bem como a iluminação zenital com claraboias. Oito pilares nos limites periféricos longitudinais sustentam lajes de piso e cobertura de vigas invertidas cuja forte inclinação foi criteriosamente detalhada: calhas periféricas, impermeabilização, cinasita e terra para o plantio de vegetação arbustiva que contribuiu de forma significativa para o bom desempenho termoacústico do projeto. A casa, à primeira vista, sugere mais um terreno inclinado repleto de vegetação que propriamente uma edificação, dada a solução integrada entre arquitetura e natureza.

1982 - Agência Banespa São Sebastião
Foto: Peninha

1982 - Showroom Huis Clos Fashion, em São Paulo
Foto: Marcelo Thomé

1987 - Residência do arquiteto, em São Paulo
Foto: David V. B. Davies

Na Casa Takao Mimura (1980), utilizando os mesmos materiais e técnicas construtivas, o arquiteto projetou uma residência pautada pela transparência entre interior e exterior, visuais a partir do jardim suspenso, e espaços com muito verde, carpas, flores e o cuidado evidente em cada pequeno detalhe. Mais uma vez, estamos diante de um projeto que desconhece uma hierarquia entre arquitetura de interiores e expressão plástica do edifício. Todas as escalas foram objeto do mesmo nível de atenção do arquiteto. Em visita à residência, é notável que, depois ser habitada pelo mesmo proprietário há 27 anos, ela se mantenha praticamente inalterada. Comparando projeto e entorno, é inevitável o choque de mentalidades: de um lado, o gradil de tela metálica, de cerca de 1 m de altura, pintado na cor laranja, de outro, o muro alto de alvenaria coroado de cacos de vidro da residência vizinha.
Para a residência do arquiteto (1982/1987), Pitanga do Amparo optou por um partido compacto, resolvido com recursos simples e econômicos como alvenaria estrutural armada de blocos cerâmicos e caixilhos de ferro basculantes de piso a teto, superando a tendência hegemônica de uma expressão plástica determinada por elementos estruturais monumentais de concreto armado. Mas a solução racional, como de costume, vem associada ao uso da cor, dos materiais e técnicas aplicados de forma direta. Embora seja uma casa introvertida, devido aos vãos modestos das aberturas, os espaços internos foram desenvolvidos de forma integrada e transparente com cores primárias nas instalações, caixilhos, mobiliário e lareira. Todos os tetos da casa foram ajardinados.

BRANCO SOBRE BRANCO
Nas décadas de 1980 e 1990, Pitanga do Amparo faz tábula rasa - literalmente - de sua arquitetura e inicia uma nova fase com ênfase nos projetos de interiores: showroom Huis Clos (1982), danceteria Rose Bom Bom (1984), apartamento Luciano Nascimento (1984), e o apartamento do arquiteto (1995). Mantido o conceito dos materiais como fonte de expressão, os mesmos foram desmaterializados pelo uso extensivo do branco, da luz difusa ou focada, do vidro e de elementos escultóricos brancos. Algumas áreas e o mobiliário, por outro lado, são totalmente escuros e densos.
Com a luz e o branco, Pitanga do Amparo mantém a síntese entre arte e arquitetura, conforme o minimalismo desmaterializado dos três painéis do apartamento do arquiteto. Sensações, brilhos, texturas e referências da cultura de massas, que o arquiteto denominou de fusion style, uma alusão ao estilo musical jazz fusion de Miles Davis.
Nos projetos predominantemente brancos, a questão da diluição de fronteiras, apontada no início deste documento, entre arte, arquitetura e ciência é verticalizada na diluição de arestas e, consequentemente, limites dos próprios planos da matéria; a nosso ver, uma transposição do Quadrado branco sobre fundo branco, obra suprematista de Malevich.
Em 2000, faz seu último projeto antes de seu período de reclusão em que estudou e viajou a Moscou. Trabalhando com a expressão direta do material, Pitanga do Amparo concebeu a vitrina da Utensílio Fashion Store com uma moldura de cobre e latão polido. Na parte superior, o vidro espelhado reflete imagens do entorno urbano. A ruptura foi estabelecida na relação entre a vitrina e o espaço de venda. Tijolo rústico, estrutura de concreto armado e vergalhão à vista da edificação existente expostos como ruínas são o contraponto à estrutura de aço e passadiços pintados de branco ligando pisos em vidro liso transparente. Dada à exiguidade do terreno, as relações visuais foram ampliadas pela transparência no sentido da altura.

1995 - Apartamento do arquiteto, em São Paulo
Foto: Tuca Reinés

AS VANGUARDAS RUSSAS
Em 2003, Pitanga do Amparo inicia sua terceira fase, uma continuidade, a nosso ver, da ruptura anunciada pelos projetos brancos, quando defende sua tese de doutorado sobre as vanguardas russas. Então, viaja algumas vezes a Moscou para aprofundar seus estudos. A Worldwhitewall Editora, fundada em 2004, assume como prioridade preencher o vazio de publicações sobre a Vkhutemas, o equivalente russo e contemporâneo da Bauhaus. Então traduz, desenvolve o projeto gráfico e publica O grande experimento: arte russa 1863-1922, de Camila Gray, e, em 2005, o Arquitetura construtivista - URSS 1917-1936, de Vittorio de Feo.

CONCURSO, PREMIAÇÃO, EXPOSIÇÃO Para o Concurso Nacional de Ideias para um Novo Centro de São Paulo, em 1996, Pitanga do Amparo propôs uma praça sobre a avenida do Estado, a fim de interligar o parque Dom Pedro ao Gasômetro. A intervenção resultaria em uma grande área de lazer, associada à implantação de edifícios residenciais, escritórios e comércio.

1996 - Concurso Nacional de Ideias para um Novo Centro de São Paulo
desenho do arquiteto
Nos anos de 1980 e 1990, Pitanga do Amparo recebeu prêmios e menções por sua arquitetura: Pequena Medalha de Prata do Salão Paulista de Belas Artes em 1981 com a residência Célio Vieira; Prêmio IAB-SP 1983 e Prêmio Universidad de Belgrano em 1987 com a loja Huis-Closs confecções; Prêmio IAB-SP 1985 com o apartamento Luciano Nascimento; Grande Medalha de Ouro do Salão Paulista de Belas Artes 1983 e Prêmio IAB 1989 com a Agência Banespa São Sebastião; Prêmio IAB 1997 com o apartamento do arquiteto.
Nos anos de 1990, a obra de Pitanga do Amparo foi exposta no Paço das Artes, quando o arquiteto Paulo Mendes da Rocha considerou sua arquitetura criativa, lúdica e inspiradora. "O nosso trabalho de arquitetura, como você pode imaginar, lida com a totalidade da informação, com a ideia de conhecimento sobre a época em que vivemos, e que abrange a história, a técnica e as situações do mundo em um determinado momento", falou Paulo Mendes. "A obra do Pitanga do Amparo, para mim, tem sido sempre extremamente estimulante, porque é muito inventiva do ponto de vista formal e, principalmente, possui uma cor extraordinária. A questão da cor na arquitetura é muito intrigante. Nós estamos distantes da época em que essa questão era resolvida, até certo ponto, com a muralidade, a pintura aplicada como aspecto decorativo da arquitetura. A arquitetura que surge por si mesma, já colorida, é extraordinariamente estimulante. E isso você vê claramente no que faz, sempre, o Pitanga do Amparo", conclui.

EDITE GALOTE CARRANZA é arquiteta graduada e com mestrado pela FAU Mackenzie e doutorado pela FAUUSP. É diretora da G&C Arquitectônica, arquitetura e editora, e da revista eletrônica 5% arquitetura+arte.
RICARDO CARRAZA é poeta, arquiteto graduado pela FAU Mackenzie e mestre pela FAUUSP. É diretor da G&C Arquitectônica, arquitetura e editora, e da revista eletrônica 5% arquitetura+arte.

Fonte: http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/234/artigo296117-1.aspx

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