Rafael Urano Frajndlich escreve sobre formação e trabalho do arquiteto Gonçalo Byrne

Por Rafael Urano Frajndlich
Edição 216 - Março/2012



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Arquiteto formado em Lisboa, Gonçalo Byrne desenvolve desde os anos de 1970 uma prática de constante articulação com a paisagem construída, que sempre desemboca em uma sofisticada elaboração sobre as cidades contemporâneas. Com projetos em Portugal e pela Europa, influencia gerações de novos arquitetos
O lisboeta Gonçalo Byrne (1941) pertence àquele grupo de arquitetos cuja formação os marcou com um crônico acento político. Graduou- se na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa em 1968, trabalhando com arquitetos como Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas, até estabelecer o próprio ateliê em 1974. Ano emblemático na história de Portugal - foi quando o autoritário regime de Salazar faliu após a Revolução dos Cravos, que restituiu ao país as instâncias democráticas. Formando-se na capital durante este conturbado período, Byrne não poderia escapar em sua prática do enfrentamento dessa nova condição política.
As primeiras obras de Byrne são frutos desse período: colaborações no Saal, programa de alcance nacional para a construção de habitação econômica, cuja premissa era implantar em grandes terrenos afastados dos centros projetos desenvolvidos com participação dos futuros moradores. Notórios arquitetos portugueses participaram da iniciativa, incluindo Alvaro Siza, que assinou dois conjuntos. Na antessala de um novo país, uma geração de profissionais se debruçava sobre esses terrenos com o claro ímpeto de inaugurar uma nova linguagem.
Tomando parte nesse coro, Byrne projeta dois trabalhos que lhe serviram de formação. Dentro do ateliê de Nuno Teotónio Pereira, o arquiteto desenhou o conjunto residencial de Chelas, em Lisboa. O conjunto é resolvido em uma tipologia laminar com praça central, permitindo uma abertura em largo que abre vista à tensa perspectiva criada pelas lâminas paralelas, próximas entre si, ligadas por pontes de concreto armado. Neste primeiro projeto, pode-se ver a influência de célebres autores pós-modernos como Louis Kahn e Aldo Rossi no modo como a equipe integrada por Byrne trata as aberturas e circulações comuns. As lâminas têm um sistema construtivo elementar. Ainda que chegue ao chão com pilotis, o resultado é uma presença monolítica na paisagem, uma planície pouco densa na periferia de Lisboa. Byrne e seu time fazem o máximo para suavizar a força dessa intervenção: em algumas quinas, recortam a lâmina e embutem circulações verticais em construções cilíndricas, abrindo grandes rasgos no meio do prédio. O volume resta com seu perímetro intacto, sem balcões, ou qualquer outra projeção para fora dos seus limites. Já existem neste conjunto traços da obra de Byrne que se mantêm em sua carreira, especialmente o diálogo com a paisagem por um salto de escala: a dimensão da intervenção nunca passa desapercebida a quem lança o olho ao horizonte que a obra cruza. A presença tem de ser visualmente forte com o entorno.
Em outra iniciativa do Saal, agora realizada em seu escritório, Byrne desenha residências unifamiliares no topo de uma encosta. O conjunto residencial do Casal das Figueiras, em Setúbal, articula 300 unidades habitacionais em renques, o que faz com que a paisagem ganhe no topo da colina faixas construídas que mediam a massa de copas verdes e o céu. Esta edificação-horizonte é feita, assim como o conjunto em Chelas, com pequenas aberturas sulcadas nos volumes, sendo possível comparar o fechado renque com os antigos fortes que marcaram a arquitetura militar portuguesa. Tal efeito de mímese já estava nos planos do arquiteto: lendo os textos de Byrne do período, vê-se a importância atribuída pelo autor aos "elementos de base do repertório histórico, como a muralha, o arco, as paredes".
Segundo o arquiteto, essa lembrança coletiva permitiria uma exaltação da função pública do edifício. Era preciso politizar as formas, colocá-las em constante ligação com uma memória universal, a serviço agora de programas de caráter democrático. O remeter-se às formas paradigmáticas vem sempre ligado ao trato do volume com cortes e rasgos, como modo de comentar o público e o privado na noção de interior e exterior. "A fachada é o plano de tensão", dizia Byrne, dentro desse jogo entre o que é de todos e o que é privado.
Essas duas experiências habitacionais são a pedra de fundação da carreira do arquiteto. Ambas são de um período especialmente conturbado da história portuguesa e, aliadas a uma abordagem participativa, criaram marcas visíveis na trajetória do autor até o presente.
Byrne nunca se especializou em um tipo de programa, e construiu projetos de diversas escalas. Ao princípio dos anos de 1980, desenhou algumas agências bancárias, como a de Arraiolos, implantada em um estreito lote de esquina em uma pequena cidade portuguesa e frente à praça central. Byrne tem o desafio de desenhar uma quina visível da cidade, contrastando com o estilo antigo das casas vizinhas, com cornijas e pequenas sacadas adornadas com guarda-corpos de ferro. O arquiteto não tinha a intenção de emular tais peças de produção artesanal, e relutava em fazer seu edifício como um corpo estranho. A solução foi um volume sóbrio, destacando sensivelmente um pedaço da fachada para criar uma altura intermediária alinhada com a cornija dos prédios vizinhos. Na elevação mais longa, um acabamento de pedra compõe a escala do pavimento térreo com os outros lotes.
A leitura cuidadosa do entorno esconde um interior de outras prioridades: a planta rebuscada, o mezanino de grande curva que passa por toda a agência, um cubo solto e oblíquo que delimita as áreas administrativas. A experiência de sulcos em um volume bem-delimitado vista nos conjuntos habitacionais aqui se torna um exercício de linhas e planos entrecruzados no interior. Enquanto isso, claraboias permitem que luzes e sombras banhem os volumes, realçando e reforçando os espaços da agência.
Em outro projeto, a Casa Sá da Costa, em Lisboa, o arquiteto interveio em um lote mais amplo, solto dos vizinhos. Byrne resolve a planta em um volume em formato de L, criando uma face externa sóbria, com recortes nas formas das esquadrias e diferenças de altura no volume geral. A solução da planta permite um jardim contínuo costeando a casa e uma face do alçado aberta ao quintal. O que era interior do prédio na agência bancária de Arraiolos aqui se torna interior do lote: volumes se projetam formando reentrâncias, sombras, recortes, desta vez expostos à luz do sol.
Há traços da influência de Alvaro Siza, mas uma coerência com o seu caminho pessoal também é visível, nos jogos entre interior e exterior, e de perímetros e recortes para interação com a paisagem. É um desdobramento de suas implantações concisas e recortadas: agora, o procedimento de fragmentar existe como um comentário ao todo da implantação. Os volumes que se sobressaem na Casa Sá da Costa mostram o momento no qual este procedimento ascende ao primeiro plano de suas investigações.
Para explicar tais vicissitudes na obra de Byrne durante a década de 1980, é preciso lembrar sua intensa atividade institucional: de 1985 a 1987 o arquiteto foi diretor da revista Jornal Arquitectos, que ainda é a principal publicação de arquitetura no país. O periódico foi fundamental para a fundação da Ordem dos Arquitectos, órgão que regulamenta a profissão em Portugal. Além de editar o conteúdo mais institucional, Byrne contribuiu com artigos sobre as cidades, a tarefa da crítica e o ensino. Em seu texto sobre as cidades, destaca-se a tensão entre as peças soltas e o projeto todo: "dificilmente se torna (...) falar da cidade atual senão como um todo, embora ela seja cada vez mais fruto da acumulação de fragmentos". Byrne se inspira na cidade contemporânea, que só poderia ser lida como montagem de fragmentos de coerência difícil.
Esse mergulho nas vias institucionais da arquitetura, dez anos após a Revolução dos Cravos, tem influência na obra de Byrne: a intenção de "exaltar a função pública" dos prédios se mantém, mas se trata menos de uma implantação concisa na paisagem onde os volumes são recortados nos seus alçados, para se tornar uma composição de volumes cuidadosamente articulados no sítio.
A casa Sá da Costa é um testemunho dessa mudança em pequena escala, mas o mesmo processo é visto em obras maiores, como a proposta para o Centro Cultural de Belém. Byrne projeta um complexo cultural com uma grande rua interna diagonal ao tecido do bairro, criando pequenos prédios na mesma linguagem sóbria e recortada da casa Sá da Costa.
Efetivamente construída tendo como parâmetro a tensão entre fragmentação e concisão no trato da paisagem foi a Faculdade de Informática e Eletrotécnica Pólo II da Universidade de Coimbra, implantada em uma encosta na margem do Rio Mondego. O programa foi resolvido com uma planta horizontal, onde volumes - pequenos edifícios de dois andares - sobressaem-se na paisagem e dialogam com as árvores de caules finos e altas do norte de Portugal. Pode-se ver a horizontalidade que marca a arquitetura de Byrne. Detendo-se o olhar, no entanto, uma série de corpos se destacam, com um ritmo que se delineia ao longo da colina.
Com isso, a atitude de se remeter a uma memória coletiva entra em crise: não se pode confundir a faculdade com as muralhas de um forte. Com uma democracia bem consolidada, não há necessidade de se remeter a arquétipos construtivos tão longínquos. A arquitetura portuguesa pode ter uma feição mais ligada às atribulações reais dos usuários de seus edifícios: a aparente fragmentação de volumes na verdade expõe ao exterior as especificidades programáticas do interior, e a função dos cômodos é publicamente declarada à cidade.
Ao longo dos anos de 1990, a obra de Byrne se torna mais livre e menos literal nas articulações de volumes. Entram elementos arquitetônicos ligados às correntes internacionais, como panos de vidro, as plantas ganham átrios suntuosos e têm uma complexidade funcional mais legível - mesmo que com exigências de alto nível. Deste período de maturidade, pode-se citar a Reitoria da Universidade de Aveiro, ou o Centro Uninova em Almada. Entretanto, o exemplo mais eloquente é o Complexo do Cais do Carvão em Funchal, na ilha da Madeira. São dois edifícios - um Clube Náutico e um Centro Oceonográfico - construídos na orla da ilha que deveriam resolver a transposição entre a via da praia e a costa, e fazer pequenas investidas em direção às águas.
Byrne faz um jogo com pequenos prédios agregados pela afinidade de suas funções. A ligação é o próprio desenho do waterfront, com piscinas, vias altas e caminhos ao longo da orla. Cada edifício tem seu modo de chegar ao mar: um pequeno pier que sai dos muros de contenção, uma rampa que sai em linha reta, uma outra rampa que leva da praia às águas. Essa multiplicação de modos de chegar ao oceano e a opção por fazer uma tipologia para cada programa, com diferentes alturas, fechamentos e implantação, criam um comentário vívido na linha costeira e um diálogo direto com a sinuosidade dessa parte da ilha. O acerto de escala, o caráter conciso que a linha de prédios adquire vendo-os das águas, mostra o controle do tema da composição na paisagem, trabalhado desde os anos de formação do arquiteto.
Em 1997 uma obra pode ser vista como ponto de inflexão na carreira de Byrne, e que moldou a feição de seus trabalhos recentes. A intervenção é no Belém, em Lisboa, com um programa ao mesmo tempo técnico e simbólico. A Torre APL de monitoramento do tráfego de embarcações, na chegada do rio Tejo com o oceano Atlântico. A tipologia vertical de uma torre é incomum na obra do autor; e o desafio de desenhá-la contrasta com a horizontalidade premente nos projetos de Byrne.
Desta vez, a obra inclina-se em direção ao mar. E os fechamentos opacos dos primeiros pavimentos se tornam um pano de vidro no topo da torre, fazendo com que ao alcançar o céu, a edificação evanesça em luz. Nas palavras do autor, a torre "progressivamente se desmaterializa, nascendo da solidez da pedra, vestindo-se do revestimento de cobre, para se concluir na ligeireza e transparência do vidro, e finalmente nas ondas hertezianas que só as antenas percebem". Toda sua intervenção transpira um lirismo até então discreto em seu trabalho.
A partir daí, os projetos de Byrne passam a ter essa articulação mais variada. Pode-se citar o edifício governamental na Bélgica com prédios transparentes e presença vertical poderosa (ainda que se mantenha uma linha horizontal igualmente dramática) ou o evanescimento total na árida intervenção na praça diante do mosteiro da Alcobaça, onde se cria um amplo espaço de saibro, deixando o conjunto exposto à cidade.
Para concluir esse itinerário de uma carreira ainda em andamento, o destaque é a polêmica intervenção residencial no Condomínio Estoril-Sol. O empreendimento de 110 apartamentos conjuga temas recorrentes da obra de Byrne: programa habitacional, paisagem lindeira ao mar, vizinha a um parque. A alta densidade faz o conjunto edificado remeter a obras mais antigas do autor, quando a presença de sua intervenção na paisagem nunca deveria ser tímida - dois corpos principais com pequenos "sobre edifícios" no topo fazem um jogo de terraços e debruçamentos, suavizado pela transparência do fechamento. O prédio é todo de aço e vidro. Sendo o único edifício de tal dimensão na orla da luxuosa periferia de Lisboa, tem uma presença grandiosa na paisagem. Não é possível separar uma horizontalidade marcante, ou a verticalidade de uma torre; Byrne faz o conjunto como um grande bloco na paisagem, uma colina construída.
O térreo é trabalhado com angulosos caminhos que fazem a passagem entre a costa do mar e ao Parque de Palmela. Um vazio central nos primeiros pavimentos faz o prédio maior parecer um pórtico, rasgando uma visual do parque ao mar, à maneira dos sulcos e reentrâncias de seus primeiros projetos.
O edifício é exemplo de mais uma tensão, a da presença e ausência, que se soma àquela visceral entre fragmento e todo. É um prolongamento da investigação inicial do jovem Byrne sobre a memória coletiva e a angústia, uma noção pública da cidade indispensável para a nova república portuguesa em construção. Passados quase 40 anos da Revolução dos Cravos, Portugal deu um salto econômico com a Comunidade Europeia e consolidou o caráter democrático do governo. A arquitetura teve um florescimento intenso na década de 2000, e muitos jovens arquitetos de renome saíram dos quadros do ateliê de Byrne (o mais conhecido é Manuel Aires Mateus).
Nesse novo cenário, Byrne passa aos meandros mais detalhados de uma busca da forma que se proponha política ou politizadora da paisagem: a arquitetura, instrumento da construção de um país, agora precisa redefinir a real dimensão de sua presença.
Aparição e desaparição, transparência e opacidade, fragmentação e todo são tensões formais que refletem sobre outras mais líricas e incompreensíveis, como paisagem e antipaisagem, moderno e antigo, restauração e ruína. A obra de Byrne tem papel preponderante no campo das artes. Estando Portugal na soleira de uma crise que pode carregar os países da Europa, a atenção sobre esse autor se faz um tanto mais atual.

BIBLIOGRAFIA
ANGELINO, A. e Sola-Morales, I. Gonçalo Byrne: obras e projetos, Lisboa: Blau, 1998.
BYRNE, G. "A fundamentação teórica", In: Jornal Arquitectos, nº 49, julho de 1986, p. 3.
BYRNE, G. "Olhar a arquitectura, perceber a cidade", In: Jornal Arquitectos, nº 42, dezembro de 1985, p. 3.
BYRNE, G. "Quelques prémices pour une architecture nouvelle", In. L'Architecture d'aujourd'hui, edição especial Portugal, maio/junho no 185, 1976, pp. 32-33.
DAL CO, Francesco (Edição). "Estoril-Sol Residence - Cascais, Portogallo", In: Casabella nº 803, julho de 2011, pp. 58-69.
MENDES, M. "Architetture di Gonçalo Byrne", In: Casabella nº 561, outubro de 1989, pp. 4-24.

RAFAEL URANO FRAJNDLICH é doutorando na FAUUSP, na área de história e fundamentos. Colabora com artigos sobre arquitetura contemporânea em periódicos do meio e é editor da revista eletrônica Veneza. Desde 2006 é sócio do escritório 23 SUL.

Fonte: http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/216/artigo252554-2.aspx

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