Um francês quis projetar Brasília

 

"Embora não tenham participado do projeto, as propostas de Le Corbusier ficaram bem impressas no Plano Piloto de Brasília, nome, aliás, sugerido por ele"

Imagem: divulgação/ Correio Brasiliense

  • Um franco-suíço poderia ter sido o autor do projeto urbanístico de Brasília. O arquiteto, urbanista e pintor Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido por Le Corbusier, muito antes da decisão de construir a nova capital da República brasileira, já manifestava o desejo de projetar a primeira cidade inteiramente concebida de acordo com os princípios do urbanismo moderno.
    A história se inicia em 1922, no centenário da independência, quando o monumento, representando a pedra fundamental da construção de Brasília, foi assentada em área próxima a Planaltina, que naquela época ainda pertencia a Goiás. O núcleo urbano, oficialmente fundado em 1859, com o nome de Mestre D’armas, ficou inserido no Quadrilátero Cruls, demarcado pela Comissão Explorada do Planalto Central do Brasil, a Missão Cruls, expedição designada pelo então presidente Floriano Peixoto para estudar possíveis áreas para construção da capital federal.
    Nesse mesmo ano, Le Corbusier projetava a sua Ville Contemporaine, projeto nunca edificado de cidade de três milhões de habitantes, no qual já ensaiava as ideias que viriam a constituir os princípios do urbanismo moderno, consagrados no manifesto Carta de Atenas, lançada no quarto Congresso de Arquitetura Moderna — Ciam em 1933. Em 1926, quando a ideia da construção da nova capital do Brasil já circulava no mundo, Le Corbusier recebe carta do artista francês Fernand Léger informando-lhe da intenção brasileira de transferir a capital para o interior do país. Outro amigo, o poeta suíço Blaise Cendrars, que já havia visitado o Brasil e conhecia Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, também escreveu ao arquiteto no mesmo ano citando o local de construção da nova cidade: “Planaltina: em região que até hoje permanece virgem”.
    Assim, em 1929, quando Le Corbusier faz a primeira visita ao Brasil, o desejo de ver materializado em plano de grande envergadura o ideal urbano esboçado na Ville Contemporaine era, segundo palavras do próprio arquiteto, “um sonho que estava em minha mente”. Le Corbusier tentou emplacar a esdrúxula proposta de cidade-viaduto no Rio de Janeiro, não deu certo. Em 1936, voltou ao Brasil. Desta vez, já como principal líder do movimento do urbanismo moderno. Nessa ocasião, foi o consultor do projeto do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, a primeira obra de destaque da arquitetura moderna brasileira.
    O projeto do MES, como é conhecido entre os arquitetos, foi desencadeador de uma série de obras importantes, que culminaram no reconhecimento internacional da nossa arquitetura, mas também foi motivo de episódio de ciúme de Le Corbusier, relatado pelo historiador Yves Bruand. O projeto publicado na famosa edição da revista Architecture d’aujourd’hui, dedicada à arquitetura brasileira em 1947, trazia a informação de que o projeto original seria de Le Corbusier, adaptado pela equipe brasileira liderada por Lucio Costa. Na verdade, os primeiros esboços de Le Corbusier para o projeto foram completamente modificados pelos brasileiros, resultando em edifício no qual já eram patentes os traços marcantes da arquitetura nacional.
    Contudo, é inegável a influência que Le Corbusier exerceu na geração de arquitetos brasileiros surgida a partir de 1930. Assim, quando a construção de Brasília já era decisão tomada por JK, a subcomissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal, instituída em 1955, propôs convidá-lo para supervisionar o projeto urbanístico de Brasília. O arquiteto deve ter se entusiasmado com a possibilidade de, enfim, realizar o acalentado sonho.
    Segundo Lauro Cavalcanti, Le Corbusier chegou a enviar uma carta a JK se oferecendo para coordenar o projeto, invocando a parceria bem-sucedida no Ministério da Educação e Saúde. A carta, entretanto, nem sequer foi respondia por JK. A proposta de ter um arquiteto estrangeiro à frente daquela que seria a maior empreitada urbana brasileira foi rejeitada pela maior parte dos arquitetos locais e a ideia do concurso nacional se impôs.
    Embora não tenham participado do projeto, as propostas de Le Corbusier ficaram bem impressas no Plano Piloto de Brasília, nome, aliás, sugerido por ele. Lucio Costa, contudo, fez a própria tradução das ideias corbusianas, rejeitando, por exemplo, os típicos arranha-céus e reinventado as unidades de habitação nas superquadras. O fato de não poder ter projetado Brasília, experiência urbana desenvolvida a partir de suas ideias, embora distinta da imaginada Ville Contemporaine, pode ter frustrado Le Corbusier. Assim, pode parecer ideia meio descabida, mas seriam as críticas raivosas de estrangeiros ao projeto urbano de Brasília só repercussão da rejeição ao urbanismo moderno? Ou inveja por não terem sido eles, os inventores do modernismo urbanístico, os autores daquela que foi sua única experiência bem-sucedida no mundo?


    Sérgio Ulisses Jatobá é arquiteto e urbanista formado na Universidade de Brasília (UnB), doutor e mestre em Desenvolvimento Sustentável (UnB/ Univerdidad de Valladolid).


  • O artigo foi originalmente publicado no caderno Opinião do Jornal Correio Brasiliense, em 02 de fevereiro de 2015.

  • Fonte: http://www.arqbacana.com.br/internal/arq!ideias/read/14449/um-franc%C3%AAs-quis-projetar-bras%C3%ADlia

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