Arquitetura e crise de energia

ARQUITETURA E CRISE DE ENERGIA
  Paolo Portoghesi [1]
Do livro “Dopo l’architettura moderna”. Roma: Laterza, 1980. Tradução brasileira “Depois da arquitetura moderna” São paulo: Martins Fontes, 2002. [2]
Escrito no final dos anos 1970, este texto, um clássico da crítica arquitetônica, mostra ainda uma extrema atualidade.

O sistema industrial moderno, essa máquina gigantesca que unifica as sociedades mais desenvolvidas, a despeito das suas diferenças políticas e institucionais, e projeta a sombra da alienação tanto sobre o mundo capitalista quanto sobre o socialismo “real”, construiu seu império sobre alicerces de barro, que o passar do tempo enfim revelou. Este sistema apoiou-se numa ideia de natureza como uma entidade infinita, da qual se poderia extrair indefinidamente a energia necessária para alimentar o moto-contínuo da produção. Quando percebemos que o sistema industrial não deve prestar contas somente de seu capital artificial, mas também de um segundo capital, este não recuperável ­­– a natureza, o grande mito do desenvolvimento infinito caiu por terra, dando lugar, porém, a outro mito igualmente improdutivo: o da crise sem saída. Depois de explorar por tanto tempo o capital da natureza, de saquear a terra como a uma cidade conquistada, o sistema prefere hoje lamentar-se diante da perspectiva inelutável do “fim da civilização” a reexaminar o problema buscando uma “nova aliança” com a natureza, um novo equilíbrio.
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Lever House.Nova Iorque, 1951-2. Arquiteto Gordon Bunshaft. De Skidmore, Owins e Merrill (SOM)
O arranha-céu de vidro, inventado nos anos 50 e ainda hoje considerado modelo insuperável para edifícios de escritórios, é também um exemplo de irracionalidade dificilmente superável.
É preciso olhar para a natureza não mais como uma entidade infinita – na qual naufragamos sentimentalmente e à qual tornamos, com espírito de rapina, no momento em que seus recursos nos servem, mas sim como algo finito, constituído pela relação da civilização humana com os demais ecossistemas. As decisões tomadas hoje projetam-se num futuro que concerne a todos, e a dilapidação do equilíbrio ambiental é justamente a mais criminosa de todas, pelo fato de tratar-se de uma riqueza irrecuperável. Há mais de um século, um pensador socialista, William Morris, advertiu-nos a não esquecer esta responsabilidade. Vale a pena reler sua exortação:
[ … ] cada um de nós deve conservar e zelar pelo ordenamento da paisagem terrestre; cada um, com seu espírito e suas mãos, na proporção que lhe cabe, para evitar legar aos nossos filhos um tesouro menor do que aquele que nossos pais nos deixaram.
Não há, pois, tempo a perder, não podemos deixar este problema sem solução até os últimos dias de nossa vida, para que seja resolvido por nossos filhos; porque a humanidade é inquieta e ávida, e o desejo de hoje nos faz esquecer nossas resoluções de ontem; [ … ] temos tempo suficiente para o que quer que seja: para povoar os desertos, abolir as fronteiras entre as nações, desvelar os segredos mais recônditos da nossa alma e do nosso corpo, do ar que respiramos e da terra que nos sustenta; para submeter as forças da natureza ao nosso poder material; mas, se pretendemos voltar a nossa atenção e curiosidade para a beleza da terra, não temos sequer um minuto a perder, sob pena de que o fluxo contínuo das necessidades humanas se abata sobre ela e a torne não um deserto de esperança (tal como já foi), mas uma prisão desesperadora; sob pena, enfim, de descobrir que o homem penou, lutou, venceu e dobrou todas as coisas terrenas sob seus pés, apenas para tornar a sua existência mais infeliz.
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Milenar Cidadela de Carcassone. Languedoc-Roussillon, França.
Enquanto um edifício em alvenaria ou pedra tem uma duração e velocidade de obsolescência mensurável em centenas de anos – prova disso é o fato de que ainda vivemos em cidades construídas na Idade Média , um edifício moderno já está decrépito depois de trinta ou quarenta anos. 

Não é, portanto, apenas o problema, apontado por Morris, da subjugação da “beleza da terra” por uma ação de consumo cada vez mais veloz, mas também o da arquitetura entendida como uma segunda natureza, como um estoque de experiências acumuladas ao longo do tempo, que se torna dramático quando percebemos que o “estatuto funcionalista”, adotado pelo sistema industrial na sua fase avançada, faz do passado uma reserva de valores e do presente nada mais que o administrador destes valores, sem reconhecer-lhe nem o direito nem o dever de oferecer uma contribuição criativa a uma reserva que, de outro modo, continua a ser consumida por terríveis mecanismos destrutivos.
O capitalismo do desenvolvimento morreu. O socialismo do desenvolvimento, que a ele se assemelha como um irmão, apresenta-nos a imagem deformada não do nosso futuro, mas do nosso passado. O marxismo, conquanto insubstituível como instrumento de análise, perdeu o seu valor profético. [ … ] Sabemos que o nosso atual modo de vida não tem futuro; que os nossos filhos, quando adultos, não utilizarão mais nem o alumínio nem o petróleo, e que, caso se realizem os atuais programas nucleares, as jazidas de urânio se esgotarão. [ … ] Sabemos que o nosso mundo está chegando ao fim e que, se continuarmos como antes, os mares e rios se tornarão estéreis, as terras serão privadas da sua fertilidade natural, o ar das cidades nos sufocará e a vida será reduzida a um privilégio ao qual só terão acesso as espécies selecionadas de uma nova raça humana, adaptada por condicionamentos químicos e programação genética ao novo nicho ecológico que os engenheiros da biologia terão sintetizado para ela.
Estas considerações de André Gorz – que abrem seu ensaio Ecologie et liberté – não têm apenas implicações econômicas e políticas, mas colocam em crise também um dos pontos centrais da cultura do projeto: o mito do desenvolvimento ilimitado. Como consequência, a arquitetura moderna, que havia assumido sua configuração “definitiva” sobre tal mito, entre os anos 20 e 60, atravessa um período de crise profunda, da qual não pode escapar a não ser to mando um rumo radicalmente novo.
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O uso generalizado do metal, por exemplo, com as suas consequências estéticas e tecnológicas, não pode continuar eternamente: o alumínio com o qual milhões de arranha-céus foram empacotados em todo o mundo logo se tornará o mais raro dos metais preciosos, e até mesmo as reservas de ferro um dia se extinguirão.

À obsolescência dos princípios que orientaram as pesquisas arquitetônicas por cinquenta anos, o mundo da cultura reagiu até agora com indiferença, admitindo, quando muito, a existência de uma revisão teórica marginal. Só os anglo-saxões, menos provincianos e conformistas, procuraram definir o alcance e a profundidade dessa crise falando de arquitetura pós-moderna e da “falência da arquitetura moderna”. Talvez a atitude mais razoável seja aceitar que a “arquitetura moderna”, como estilo de uma época, como expressão de uma civilização tecnológica emergente, está morta, e que o título cabe agora a uma arquitetura diversa, tanto quanto aquela o foi do ecletismo que a precedeu.
A sociedade tecnológica em decadência, que procura salvar-se das consequências mortais da herança do otimismo construtivista terá, ela também, a sua arquitetura, e é inútil tentar reanimar um cadáver, ou pior ainda, embalsamá-lo, tal como fazem, com as melhores intenções e os resultados mais macabros, aqueles que sustentam a “continuidade” a todo custo, especialmente na Itália.
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O aquecimento ou resfriamento de uma casa com paredes de pedra e janelas proporcionadas requer um décimo da energia necessária para aquecer uma casa com paredes de vidro e lajes delgadas. 

Como todo momento de transição, este que atravessamos apresenta um panorama confuso e contraditório, no qual os fatos emergentes parecem peças de um mosaico incompleto, construindo uma figura de contornos incertos e quase indecifrável. Os velhos teóricos do Movimento Moderno qualificaram estes episódios como desobediências heréticas, evasões vergonhosas da ortodoxia conservadora; de fato, são os primeiros sintomas de um processo cuja duração e resultados ainda são imprevisíveis. Já são claras, no entanto, as características mais obsoletas da tradição arquitetônica corrente, os nós que uma vez desatados darão origem aos fundamentos de um novo método. Analisemos alguns dos mais significativos.
A arquitetura como bem de consumo
A filosofia do Movimento Moderno identifica a arquitetura com os objetos utilitários. Le Corbusier definiu a casa como uma “máquina de habitar”, e não poucas vezes perseguiu-se a industrialização da produção imobiliária com uma espécie de fervor religioso. O distanciamento da natureza, a opção por materiais artificiais, a relação visual e funcional com o universo da máquina constituíram os objetivos das correntes dominantes, os quais tiveram profundo impacto sobre a transformação do território e sobre a nova fisionomia urbana.
Uma civilização que queira realmente reparar o desequilíbrio ecológico e a devastação dos recursos naturais não pode dar-se ao luxo de construir com tais métodos e ideais. O uso generalizado do metal, por exemplo, com as suas consequências estéticas e tecnológicas, não pode continuar eternamente: o alumínio com o qual milhões de arranha-céus foram empacotados em todo o mundo logo se tornará o mais raro dos metais preciosos, e até mesmo as reservas de ferro um dia se extinguirão. Um luxo ainda mais inaceitável diz respeito ao custo de manutenção e gestão de energia em edifícios com grande quantidade de componentes metálicos. Enquanto um edifício em alvenaria tem uma duração e velocidade de obsolescência mensurável em centenas de anos – prova disso é o fato de que ainda vivemos em cidades construídas na Idade Média -, um edifício moderno já está decrépito depois de trinta ou quarenta anos, e requer a substituição de vários dos seus elementos. A soberana indiferença dos arquitetos diante da ação destruidora da atmosfera – em particular da chuva, que os levou a banir telhados e caixilhos – resultou num tipo de arquitetura de jovialidade efêmera, incapaz de envelhecer com dignidade: uma arquitetura transitória, a ser sempre substituída em função da moda, assim como uma roupa ou um automóvel.
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Hillingdon Civic Centre. Grande Londres. 1973-6. Arquitetos Robert, Matthew, Johnson Marshall & Partners.   Materiais e formas tradicionais, e uma espacialidade atual formam um grande exemplo do que foi a reação pós-moderna dos anos 1970.

O mundo da cultura reagiu com indiferença à obsolescência da arquitetura moderna, admitindo, quando muito, a existência de uma revisão teórica marginal. Poucos admitiram o alcance e a profundidade dessa crise, admitindo uma arquitetura pós-moderna.

Ainda mais trágico é o quadro do consumo energéticoO aquecimento de uma casa com paredes de pedra e janelas proporcionadas requer um décimo da energia necessária para aquecer uma casa com paredes de vidro e lajes delgadas. E o arranha-céu de vidro, inventado nos anos 50 e ainda hoje considerado modelo insuperável para edifícios de escritórios, é também um exemplo de irracionalidade dificilmente superável: a substituição das suas paredes externas por membranas transparentes tornou-o muito mais permeável às variações de temperatura ao longo do dia, ao calor e ao frio. Para compensar esta falha, não só é necessário aumentar o consumo de energia como superdimensionar as instalações. Por sua vez, o controle da luminosidade destes edifícios impõe sistemas de escurecimento parcial que além de custosos têm pouca duração, contribuindo para acelerar seu envelhecimento.
Nascida para combater o desperdício dos ornamentos postiços impostos pelo gosto eclético oitocentista, a arquitetura moderna, ao ser adotada pelo capitalismo em ascensão por sua ética de austeridade e simplicidade, transformou-se paradoxalmente na arquitetura do desperdício de energia: um gigantesco mecanismo de consumo dos limitados recursos da terra que, além de tudo, requer a renovação contínua do seu efêmero patrimônio.
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Vista geral de Beijing. A cidade moderna afasta-nos cada vez mais da consciência de que a vida humana é parte indissociável de um ecossistema composto por muitas e diversas formas de vida. 

Trabalho mecânico e trabalho humano
Outro aspecto da arquitetura moderna que parece dificilmente conciliável com os problemas da sociedade de amanhã – caso esta tenha a coragem de enfrentar a grande questão do equilíbrio ambiental – é a ênfase dada aos valores da matéria, em detrimento da sua elaboração e transformação. Aquilo que na arquitetura à qual estamos habituados representa o status symbol, o prestígio do proprietário e do usuário, é, antes de mais nada, a preciosidade, ou melhor dizendo, o preço dos materiais empregados. Na sua tendência à simplificação e à nudez, a arquitetura moderna despojou a forma de seu valor simbólico, transferindo-o para a matéria.
Peças superpolidas de mármore, transportadas de lugares remotos; metais raros; tapetes ultra macios; guarnições onerosas; instalações sofisticadas, utilizadas apenas em caráter excepcional, substituíram, com a sua retórica própria, a velha retórica da decoração postiça. Como resultado, ao desperdício de energia humana contrapôs-se um desperdício de recursos e energia natural não menos danoso; aliás, ainda mais danoso, quando se considera a chaga do desemprego, a dificuldade de distribuir entre o homem e a máquina o trabalho necessário à vida social, fazendo prevalecer os interesses humanos.
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Centro de Proteção Ambiental de Balbina. Arquiteto Severiano Porto.
É preciso também levar em conta o imenso patrimônio específico de cada lugar e redescobrir a identidade inconfundível do território, nas suas realidades locais. 

Abandonado o mito da automação como libertação, abandonada a promessa de uma época de ouro resultante da substituição do trabalho humano pelo mecânico, caem por terra consequentemente muitos dos mitos estéticos gerados pela esperança em certo “reino da liberdade” ao qual se chegaria de automóvel.
A ênfase analítica
O domínio do espírito analítico e a ausência de visões sintéticas capazes de dar conta da análise não por meio de decisões unilaterais e polêmicas, mas por decisões integradas, é outro estigma que caracteriza a arquitetura e o urbanismo. Este estigma fez o urbanismo nascer como parte separada da arquitetura, cavando um fosso entre dois momentos extremamente interligados da transformação do território. Nas civilizações antigas, fazia-se urbanismo através da arquitetura, com intervenções concretas definidas em cada um de seus aspectos; hoje faz-se urbanismo com enormes papéis coloridos e relatórios intermináveis, destinados a permanecer “letra morta”.
A operação característica do urbanismo consiste em dividir o solo em partes e estabelecer vínculos, regulamentos, normas permanentes e provisórias. O arquiteto, convocado posteriormente, é então colocado diante de um “lote”: uma das parcelas definidas pelo traço de outro arquiteto à qual deverá adaptar seu projeto, ignorando o que um terceiro especialista, encerrado em seu próprio escritório, está desenvolvendo ao mesmo tempo para o lote adjacente. Os desequilíbrios ambientais resultantes deste procedimento, nós os conhecemos bem; basta dar uma olhada nas nossas periferias, o único campo de experimentação concreta da arquitetura moderna.
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Teardrop Park. Nova Ioprque 2004. Arquiteto Michael Van Valkenburgh Associates.
As novas intervenções sobre as cidades existentes sugerem a revisão do urbanismo tradicional, assentado sobre os dogmas já obsoletos dos padrões quantitativos e do zoning.

Caso se estendesse o estudo sobre os equilíbrios ambientais ao ambiente humano – nele incluindo, logicamente, o ambiente construído -, descobrir-se-ia que existem fenômenos equivalentes às nuvens tóxicas de dioxina que detêm o triste privilégio de serem permanentes. Um dos fatores de desequilíbrio do novo ambiente urbano – ou seja, não exclusivo daquele criado pela especulação imobiliária – é o descaso com que se trata a memória coletiva dos habitantes, sua noção de espaço e de cidade. Não se trata, obviamente, de evocar ou imitar o passado, mas de considerar seu testemunho como parte do nosso presente e como fator determinante para o equilíbrio ambiental.
É cedo para dizer como será a arquitetura pós-moderna, ou em que sentido ela será diferente da arquitetura com a qual estamos familiarizados. Mas ninguém pode nos furtar a esperança de que ela esteja mais próxima dos desejos humanos, e se assemelhe mais às descrições dos profetas da primeira Revolução Industrial, como William Morris, que às imagens produzidas pelos mobetes da segunda revolução interrompida, que imaginaram unidades de habitação com quilômetros de comprimento, cidades subterrâneas, casas móveis como trailers, inseridas como gavetas num espectral esqueleto de aço.
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Park Hill. Conjunto habitacional em Sheffield. 1957-61. Arquitetos Jack Lynn e Ivor Smith. Um marco da arquiotetura brutalista.

Os símbolos mais eloquentes da vida urbana são o automóvel e o “edificio-caserna”- somatório de células unifamiliares semelhantes.

O que não se deve aceitar é a hipótese de que uma nova arquitetura possa nascer da redistribuição dos papéis das velhas tendências codificadas pelos historiadores, ou viver de renda sobre uma tradição já velha, mas ainda não antiga. Em todo caso, é fundamental revisitar criticamente o passado próximo e separar o que está vivo do que está morto, os ramos ainda verdes dos que já estão secos. A operação poderia resolver-se com a dizimação dos grandes profetas, não para subtrair-Ihes o direito à porção de glória que historicamente lhes cabe, mas para varrer da área as suas proposições, cuja permanência e atualidade só podem ser afirmadas e defendidas por aqueles que têm o gosto macabro dos embalsamadores.
A cidade moderna
A cidade moderna, filha da sociedade industrial na sua fase mais madura, é a forma histórica reificada e tornada concreta da alienação social. Nela, a subserviência do homem a finalidades extra-humanas, contrárias às suas necessidades reais, assumiu formas extremas e paradoxais. A distância entre a habitação e o local de trabalho, a escassez de serviços sociais, a poluição, o afastamento psicológico da natureza, a projeção das divisões de funções instauradas na fábrica sobre os espaços urbanos, favoreceram a criação de um ambiente historicamente artificial, pouco propício à instalação de uma sociedade equilibrada e ao seu desenvolvimento ordenado.
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Na sua tendência à simplificação e à nudez, a arquitetura moderna despojou a forma de seu valor simbólico, transferindo-o para a matéria.

Se ao longo do século passado a burguesia em ascensão soube, bem ou mal, dar forma a uma cidade feita à sua imagem e semelhança, na qual as instituições públicas constituíam a espinha dorsal do organismo urbano, no nosso século, e sobretudo a partir do pós-guerra, a burguesia capitalista lançou mão do álibi da utilidade e da economia para rebaixar, de uma vez por todas, as novas áreas da cidade à condição de “periferias”. Construídas à margem dos antigos núcleos urbanos, estas absorveram a função de dormitórios e deixaram de representar qualquer continuidade com relação ao tecido original da cidade.
Ao mesmo tempo, os centros históricos e suas expansões oitocentistas, do tempo em que ainda se celebrava o rito da “magnificência civil”, eram embalsamados como reservatórios de valores e símbolos a serem utilizados com parcimônia cada vez maior. Paralelamente a este processo de eclipse da cidade, ou em todo caso, de desqualificação da sua estrutura – que de organismo complexo transformou-se numa série de camadas superpostas em função do desenvolvimento acentuado pelo consumo artificial – assistimos a uma espécie de privatização crescente da vida urbana, cujos símbolos mais eloquentes são o automóvel e o “edificio-caserna” – somatório de células unifamiliares semelhante, também morfologicamente, aos columbários dos grandes cemitérios urbanos.
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Centro de Varsóvia reconstruído.
Os centros históricos e suas expansões oitocentistas, do tempo em que ainda se celebrava o rito da “magnificência civil”, eram embalsamados como reservatórios de valores e símbolos a serem utilizados com parcimônia cada vez maior

As lutas pela reivindicação de uma nova (e, sob certos aspectos, “antiga”) qualidade de vida, surgidas espontaneamente nas últimas décadas nas periferias alienadas, repropuseram a inversão da paradoxal tendência à privatização e uma reapropriação do ambiente que permita a reconstituição, sobre bases participativas, da estrutura de funções coletivas que a velha cidade oferecia como uma dádiva generosa do Estado-patrão. Segundo esta estratégia, as novas intervenções sobre as cidades existentes sugerem a revisão do urbanismo tradicional, assentado sobre os dogmas já obsoletos dos padrões quantitativos e do zoning, e a reedição dos programas de ação direta, que são a expressão dos movimentos coletivos capazes de superar a fase da denúncia e do protesto gratuitos. Mas é preciso também levar em conta o imenso patrimônio específico de cada lugar e redes cobrir a identidade inconfundível do território, nas suas realidades locais. Com efeito, sem uma cultura renovada do território, que reintegre ou desperte a consciência coletiva dos lugares, dificilmente se encontrará solução para o problema do planejamento de baixo para cima que incida sobre os principais fatores de alienação do ambiente urbano.
Uma segunda natureza
A cidade moderna afasta-nos cada vez mais da consciência de que a vida humana é parte indissociável de um ecossistema composto por muitas e diversas formas de vida. Neste sentido, a cidade, em sua forma histórica atual, configura um ambiente não menos evasivo e deformador do que o “campo”, entendido como o reverso da moeda urbana. Reconciliar estes dois modelos opostos constitui, pois, um dos objetivos associados à redistribuição igualitária dos recursos e à eliminação dos privilégios, ao qual também estão ligadas as esperanças de deter, ou ao menos frear, o processo de depauperamento que já corre o risco de tornar-se vertiginoso.
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Sagrada Familia Salermo Portoghesi
Igreja da Sagrada Família. Salerno. 1969-74. Arquiteto Paolo Portoghesi.

Antes de ser instrumento de intervenção, a arquitetura, através do desenho, deve ser instrumento de exploração da possibilidade de uma nova relação entre os assentamentos humanos e a natureza, em consequência deste novo modo de percebê-Ia como o “outro capital” ao qual devemos prestar contas – ou seja, não como o infinito que nos assedia, mas como um “finito” com o qual estabelecer uma nova aliança. Enquanto o naturalismo romântico e contemplativo combatia a cidade como racionalidade organizada e buscava o infinito da natureza como forma de evasão da estrutura coletiva, como lugar do monólogo interior, hoje pode-se enxergar a natureza como algo do qual a sociedade faz parte, e cuja investigação em termos racionais é indispensável para que se possa conhecer – não de maneira ilusória – o sentido das ações humanas, sobretudo daquelas que resultam na sua transformação. “O artista é um ser humano – escreveu Paul Klee -, ele mesmo é natureza, fragmento da natureza no domínio da natureza.” O diálogo com a natureza vem a ser, pois, reconhecido como condição de todo pensamento artístico. Mas em que medida nossa cultura foi influenciada por esta nova abordagem, segundo a qual a natureza se manifesta para além do mistério impenetrável da sua aparência tradicional, como algo “distinto de nós”?
Há uma década, pelo menos, insiste-se cada vez mais na ecologia. Percebemos que se não recuperarmos o antigo equilíbrio ambiental que havia tornado possível- e não raro agradável – a vida do homem, dos animais e das plantas, corremos o risco de sermos arrastados por um desequilíbrio generalizado, um novo caos do qual nem mesmo a excepcional capacidade de adaptação demonstrada pela raça humana poderá defender-nos por muito tempo. Mas a questão da reconciliação com a natureza, de perceber que nosso desrespeito para com ela se volta contra nós, não é a única que devemos urgentemente enfrentar para assegurar nossa sobrevivência e um mínimo de continuidade em relação ao patrimônio de experiências materiais e espirituais acumuladas pelo Homo sapiens.
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Mesquita de Roma. Arquiteto Paolo Portoghesi. 1974-95.
Na obra construída de Portoghesi, o presente convive com o passado, a tradição ocidental cristã com a islâmica oriental: uma solução perfeitamente alinhada com a tese que defende de dar espaço à tradição enquanto estímulo à inovação e à convivência de culturas distintas.


O ambiente em que o homem vive não é apenas natural, mas representa o somatório deste com o ambiente construído: a natureza transformada pela ação humana constitui uma segunda natureza, com seus equilíbrios e desequilíbrios. Se, paralelamente à ecologia dos equilíbrios ambientais da natureza, admitíssemos a existência de uma ecologia igualmente rigorosa dos equilíbrios ambientais artificiais, estaríamos em condições de dar uma resposta, não parcial, mas global, ao grande problema da sobrevivência. Tratar-se-ia então de construir, sobre as ruínas do urbanismo, da geografia urbana e territorial e da hipótese de separação entre arquitetura e planejamento territorial, uma nova ciência dos assentamentos.

NOTAS
[1] Paolo Portoghesi (1931,Roma) é arquiteto, teórico, historiador e professor de arquitetura da Universidade La Sapienza em Roma. Ocupou o cargo de presidente da seção de arquitetura da Bienal de Veneza entre os anos de 1979 a 1992. Foi editor chefe do jornal Controspazio (1969-83), e Reitor da Faculdade de Arquitetura na Universidade Politécnica de Milão (1968-78). Em seus textos, luta todo o tempo contra o que classifica como uma amnésia, que dava à modernidade a ilusão de ter redefinido a história, o que poderia, em sua opinião, leva-la ao  naufrágio no irracionalismo.
O livro do qual foi retirado esse texto é um marco da critica arquitetônica dos anos 1970, e, juntamente com o livro “The language os post-modern architecture”, de Charles Jencks, assentou as bases do pós-modernismo arquitetônico, tratando de temas que até hoje mantém a atualidade.
[*] Publicado com autorização da editora

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