O Arquiteto e a Cidade Acessível: O Ensaio Premiado

Image of wheelchair in front of barrier via shutterstock.com      Image of wheelchair in front of barrier via shutterstock.com

Todos os anos, o Departamento de Arquitetura da Universidade da Califórnia, Berkeley atribui o Berkeley Prize de modo a promover a pesquisa de arquitetura como arte social. O tema deste ano era “O Arquiteto e a Cidade Acessível.” O ensaio que se segue, “Um dia na vida de um utilizador de cadeira de rodas: circulando por Lincoln,” escrito porSophia Bannert da Universidade de Lincoln, venceu o primeiro prémio.

O discurso arquitetônico tornou-se gradualmente incoerente com as necessidades sociais e éticas da cidade contemporânea. Com a relação tensa entre a teoria e a prática, a irrelevância social no design é ubíqua. Os arquitetos que praticam a profissão vêem frequentemente a teoria como esotérica e não-transferível, enquanto muitos teóricos não manifestam as suas idéias na realidade através da construção. Este trabalho foi escrito para persuadir, motivar e encorajar que existe valor real na promoção das idéias que se seguem. Os conceitos propostos não são apenas aplicáveis à cidade de Lincoln, são relevantes e adaptáveis à todas as cidades. Inspirado pela arquitetura que ainda não se manifestou, espera suscitar o espírito necessário para erradicar desigualdades sociais no desenho urbano.

Como disse Albert Einstein: “Se os fatos não encaixam na teoria, mudem-se os fatos”. De modo a ter um entendimento palpável do que seria verdadeiramente ter uma deficiência motora em Lincoln, aluguei uma cadeira de rodas por um dia para ver por mim mesma se os fatos se encaixavam na teoria.

Leia mais sobre a história premiada de Sophia Bannert abaixo.

Sozinha e pequena na rua, a minha auto-consciência aumenta. Grupos grandes de gente apressada se aproximam. Em minutos, toda a minha identidade mudou aos olhos da cidade. A minha cadeira de rodas é a minha fortaleza e minha inimiga. As suas grandes rodas frágeis são a minha primeira e única defesa, mas são também o meu fardo. Empurrada para uma versão extremamente complexa do que antes conhecia como realidade, os meus olhos começam a escrutinar e dissecar a superfície da rua de paralelepípedos à frente em zonas a que posso e zonas a que não posso acessar. Nunca antes tinha observado a paisagem urbana com tão meticuloso detalhe. Diferenças de altura mínimas como beiras de calçada e ranhuras entre pedras transformam-se em montanhas, impedindo cruelmente a progressão e tornando os pequenos avanços esgotantes. Ao mesmo tempo que combato obstruções físicas, eu própria torno-me uma. Se as ruas fossem alargadas, talvez os cidadãos com deficiência não fossem vistos como causadores de obstruções.

Uma das cidades mais históricas da Europa, reconhecida pela sua vibrante fusão do velho e do novo, Lincoln situa-se na parte leste da Inglaterra Central. As pessoas são atraídas pelas pitorescas calçadas das ruas da cidade, que tecem o corpo da cidade como vasos capilares, contraindo o fluxo de pessoas em alguns lugares e permitindo acesso em outros, através de confusões de atalhos.

Testemunhando atualmente um crescimento populacional extraordinário, o Lincolnshire Research Observatory publicou números referindo que desde 2010 tem diminuído os óbitos e um aumento surpreendente dos nascimentos. Esta correlação acontece tanto em uma escala local como internacional. As previsões da Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmam que, nos próximos cinco anos, o número de adultos com mais de 65 anos serão em maior número do que as crianças com menos de cinco anos. Em 2050, estes adultos serão em maior número do que as crianças com menos de quatorze anos. A população global está crescendo rapidamente, colocando questões sobre como poderá a terceira geração ser acomodada. A longevidade acrescida pode não ser causa de celebrações; este fenômeno mundial está ligado à deficiência. A OMS calcula que ‘dois terços das pessoas com deficiência têm mais de 60 anos’. O processo de envelhecimento é muitas vezes acompanhado por alguma forma de deficiência – seja ela física ou mental. Hoje, mais do que nunca, a deficiência pode afetar a sua vida. Estas previsões ameaçam repercussões futuras caóticas. O nosso ambiente urbano precisa desesperadamente evoluir a um ritmo que espelhe o da humanidade.

A arquitetura da cidade de Lincoln conta uma história rica e fascinante. Dividida entre a base e o cume de uma colina, os Romanos ligaram estas duas áreas com a Steep Hill. Nomeada ‘Britain’s Great street’ em 2012 pela Academy of Urbanism, a bicentenária Steep Hill é conhecida pela sua íngreme subida, vangloriando-se de seus 14% de inclinação.

A minha cadeira balança e pára, bloqueada entre os antiquados paralelepípedos no sopé de Steep Hill; não posso avançar mais.

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Courtesy of Sophia Bannert      Courtesy of Sophia Bannert

A colocação de paralelepípedos rasos novos aliviaria este problema, ao mesmo tempo que mantinha a beleza histórica de Lincoln. Superfícies mais planas tornarão as transições mais simples para todos. A instalação de um funicular ligaria as duas cidades com suavidade, ao mesmo tempo que se tornaria uma atração em si própria. Isto foi discutido pela Câmara Municipal para melhorar a acessibilidade de Steep Hill, mas ainda não passa de uma ideia.

Nas palavras de Raymond Lifchez, ‘A arquitetura só pode ser capacitante se os arquitetos desenvolverem empatia.’ Esta citação soou verdadeira para mim depois de me ter sido negado o uso da casa de banho para deficientes no edifício de arquitetura da Universidade de Lincoln. Se o arquiteto, Rick Mather, não tinha empatia para com os utilizadores deficientes ou se estava desenhando de acordo com padrões mínimos baixos, a realidade evidente é que o banheiro era muito estreito para manobrar uma cadeira de rodas dentro e perto da porta. Na minha opinião, os padrões mínimos precisam ser elevados para prevenir a ocorrência destas falhas.

O Artigo 9 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas, sobre ‘Acessibilidade’, afirma que: todas as partes devem tomar medidas apropriadas para assegurar que as pessoas com deficiência estejam em condições de igualdade com os demais. Isso inclui ‘a identificação e eliminação de obstáculos e barreiras à acessibilidade’, bem como: ‘desenvolver, promulgar e fiscalizar a implementação das normas e diretrizes mínimas para a acessibilidade das instalações e serviços abertos ou prestados ao público.’ Apesar de ser um constituinte da Convenção das Nações Unidas, Lincoln não cumpriu os termos. Lincoln também violou pelo menos seis dos artigos incluídos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia (2000), relativos à não-discriminação, dignidade humana e respeito.

Fico curiosamente perplexa com o fato de, mesmo depois de assinar convenções que implicam o contrário, Lincoln continuar a criar espaços inacessíveis, afastando habitantes com deficiência. O fato é que é mais barato servir acessos pobres se ninguém for acusado. Isto levanta a questão de saber se as diretrizes devem tornar-se lei, implementando um desenho universal consistente. A Câmara Municipal continua cega e surda às necessidades da sua população. “Até que estes problemas sejam resolvidos, as declarações que enfatizam a importância de um ambiente urbano inclusivo serão percebidas, pelo menos por alguns membros da sociedade, como não sendo mais do que trivialidades vazias.” (Atkins, 2001)

Dirijo-me para uma rampa situada na parte de trás de um supermercado, para comprar um lanche. Após várias tentativas falhas, permaneço da base da rampa, não consegui subir. A inclinação é muito grande; numa tentativa final, a minha cadeira ergue-se para trás e sou atirada da cadeira para o cimento frio e zombeteiro.

Isto é uma declaração para todos os designers e arquitetos. Em poucas horas circulando por Lincoln numa cadeira de rodas, os meus direitos humanos básicos tinham sido violados mais de uma vez. Ver negado o direito de usar o banheiro bem como não conseguir entrar no supermercado para comprar comida com autonomia é simplesmente inaceitável. A inclinação da rampa deveria ser diminuída para integrar completamente todos os utilizadores.

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Courtesy of Sophia Bannert      Courtesy of Sophia Bannert

Ambientes internos são tão importantes como os ambientes externos. Ao visitar uma rede de cafés bem conhecida, descubro rapidamente um efeito  dominó de obstruções que não tinha previsto. Com o balcão bastante acima da minha cabeça, alcançar uma bebida fervendo é tão complicado como segurá-la enquanto manobro a cadeira de rodas com os dois braços. A ausência grave de espaços flexíveis para cadeira de rodas é também um inconveniente. Sendo uma companhia global bem conhecida, seria de esperar um desenho universal bem desenvolvido e ergonômico, apropriado para todos, mas, surpreendentemente, não é este o caso.

Discutir a acessibilidade com outros cadeirantes oferece outra perspectiva. Michael foi forçado a usar uma cadeira de rodas desde a infância. Tendo vivido em Lincoln toda a sua vida, está bem consciente das barreiras; mapeou mentalmente todas as ruas sabendo exatamente onde pode e onde não pode aceder, resultando em uma área surpreendentemente pequena onde se sente confiante para se deslocar. Aventurou-se poucas vezes na parte alta da cidade com enorme dificuldade. Isto constrói um sentimento de inferioridade; só os fisicamente aptos podem facilmente visitar e viver na parte alta da cidade.

Ele desejava há muito tempo se deslocar à Usher Art Gallery, mas tinha sido erradamente informado de que era inacessível às pessoas com deficiência motora. Isto ilustra a falta de informação da cidade quanto à acessibilidade, que leva a percepções de que o ambiente urbano é inseguro. Acredito que esta situação pode ser bastante melhorada com campanhas locais e cobertura dos meios de comunicação.

Os transportes públicos são outro elemento importante da acessibilidade numa cidade, abrindo partes da metrópole que seriam de outra forma inacessíveis a algumas pessoas. Como disse Norman Foster: “Os espaços que envolvem os edifícios funcionam como pulmões.” Regular e guiar o fluxo de pessoas para dentro e para fora das membranas dos edifícios é tão importante como os edifícios individuais.

Quando Michael tenta pegar um ônibus, é comum o motorista não parar para ele. A razão é que alguns ônibus antigos estão indevidamente equipados para cadeira de rodas. Recentemente foi-lhe recusado pegar um ônibus cinco vezes seguidas. No entanto, um dia pegou um ônibus que não tinha espaço específico para cadeira de rodas que permitisse segurá-la: a cadeira de rodas virou-se de lado, esmagando-lhe o braço e causando-lhe ferimentos. Os motoristas de ônibus que não estão devidamente preparados evitam compreensivelmente transportar pessoas com deficiência a bordo e vice-versa. Michael evita agora andar de ônibus. Lincoln pode acabar com estes medos ao assegurar que todos os ônibus sejam apropriados à deficientes com plataforma elevatória, e providenciar espaços públicos adequados à estas pessoas.

Durante a discussão com Michael, fiquei chocada pois ele não disse uma única coisa positiva sobre a acessibilidade em Lincoln. Nas palavras de Helen Keller, “Embora o mundo esteja cheio de sofrimento, também está cheio de pessoas que o ultrapassaram.” O design participativo envolvendo diversas opiniões manifestaria com rigor a existência de diferentes necessidades da sociedade.

Observei aspectos positivos de acessibilidade em Lincoln. Vias importantes são controladas com cruzamentos para pedestres, cada um equipado com marcas táteis e visuais, excelentes para cegos e os surdos. Embora estes elementos de segurança rodoviária sejam implementados pelo Departamento de Transportes do governo como norma, são um sinal de esperança para a integração de outras ajudas à deficiência no futuro.

Voltei ao centro da cidade à noite para descobrir uma perspectiva totalmente alterada. Um lugar normalmente ocupado com pessoas estava agora abandonado e calmo. ‘Mais do que vazio parece hiper-vazio, com uma população total negativa, tão evidentemente ausente que brilha como luzes neon’.

Raramente se vêem pessoas com deficiência à noite. Penso que é por causa da desconfiança de que as ruas sejam inseguras à noite. O medo de ser atacado deve ser ele próprio atacado, para que deixe de existir. A cidade precisa de sinalização clara e boa iluminação, espaços abertos com remoção de obstáculos. Saúde e segurança são fundamentais.

A arquitetura física coincide com a arquitetura psicológica criada nas nossas mentes. A segregação física sutil influencia a forma como os indivíduos são percebidos na sociedade. As zonas de transição na cidade, formadas por vazios entre estruturas, têm um fluxo contínuo de atividade humana através delas. Canais da vida pública, estes espaços são animados e vivem através da existência humana. Por isso, podemos argumentar que estes espaços se tornaram eles próprios organismos sociais; com a sua própria mente; refletindo as mentes individuais combinadas que enchem os vazios; cria-se uma consciência e inconsciência coletivas. O preconceito está embutido nas paredes da cidade.

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Em uma sociedade os indivíduos aprendem atitudes sociais uns com os outros. Os pensamentos individuais fundem-se numa consciência coletiva, mostrando um ‘comportamento de manada’ a um nível inconsciente. Os preconceitos relativos à deficiência são muitas vezes aprendidos desta forma. Pode dizer-se que as mídias sociais se tornaram recentemente um fluxo vivo de consciência coletiva visualizada. Por isso, este meio tem um grande poder para combater as barreiras sociais.

Louis Harris Poll mostrou que 58% das pessoas entrevistadas sentiam-se embraçadas e desconfortáveis na presença de uma pessoa com deficiência e 47% sentiam medo. Pessoas sem deficiência que temem o grupo minoritário mais numeroso do mundo mostra que encontrar cidadãos com deficiência não é uma ocorrência comum; talvez seja devido aos acessos difíceis que funcionam como barreiras para os espaços públicos, que foram desenhados por estas pessoas, criando uma cisão, excluindo as pessoas com deficiência. Esta situação leva-nos a perguntar quão bem se pode desenhar um espaço para todos, quando não se está consciente de uma parte da população. De fato, era forçoso que num tal ciclo vicioso existisse uma paisagem cheia de barreiras com os péssimos resultados que agora se vêem nas nossas cidades.

Ao observar cidadãos com deficiência no coração de Lincoln, noto que a sua mera presença provoca reações muito diferentes nas pessoas. Podem ser completamente ignorados ou ser-lhes dada demasiada atenção. Ser completamente conhecido ou desconhecido, não há um confortável meio termo na atenção que recebem. Circular entre dois extremos ilustra quão desconfortável e inexperiente esta sociedade está na relação com as pessoas com deficiência motora. Esta barreira silenciosa pode ser gradualmente removida com ativismo social e campanhas. Mais importante, a arquitetura tem um papel absolutamente essencial em derrubar estes estigmas. Se as barreiras físicas forem derrubadas, então as barreiras sociais seguir-se-ão rapidamente. Quando a nossa cidade for construída para todos, os preconceitos desparecerão.

As cidades estão num constante estado de fluxo. A procura de um progresso igualitário em Lincoln é um projeto que precisa de ser cuidado passo a passo, desgastando-se os degraus até se tornarem uma rampa. Será necessário um investimento de tempo e dinheiro gradual e substancial. Mas antes de tudo isso, o primeiro passo requer uma consciência social aumentada na sociedade, expandindo as fronteiras da percepção, envolvendo os cidadãos; percebendo a necessidade coletiva de uma cidade mais acessível. Quanto maior a multidão de apoio; mais sonora será a mensagem; mais apropriada será a cidade para todos, expressando uma cidade que pertence a cada um.

Somos parte de um coletivo; temos que incluir cada um e lutar por todos. Afinal, é isto uma comunidade, não é? Falhar na resposta às mudanças demográficas que estão ocorrendo trairá as gerações futuras. Como Einstein disse, “Não podemos resolver problemas com o mesmo tipo de pensamento que usávamos quando os criávamos.” Precisamos pensar o futuro com diretrizes que os arquitetos queiram obedecer para o bem das pessoas.

A equidade é vital para o sucesso da acessibilidade para todos. Precisamos de design que não seja inerentemente discriminatório e que facilite a segurança, acesso igual e dignidade, independentemente das capacidades físicas ou mentais. A beleza e história de Lincoln devem existir para gozo e apreciação de todos. Todos merecem acesso igual. Nas palavras de Mahatma Ghandi, ‘A grandeza de uma Nação mede-se pela forma como trata os seus membros mais fracos.’

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Courtesy of Sophia Bannert    Courtesy of Sophia Bannert

Sophia Bannert estuda arquitetura na Universidade de Lincoln. Pretende ser uma defensora do design inclusivo e acessível, ajudando a erradicar a discriminação arquitetural e social existente contra a deficiência nos nossos ambientes urbanos. Contate Sophia através do endereço sophiabannert@hotmail.co.uk.

Veja o artigo, com a bibliografia completa, no site do Berkeley Prize

Imagem de cadeira de rodas em frente a uma barreira. shutterstock.com

Fonte: Sophia Bannert. "O Arquiteto e a Cidade Acessível: O Ensaio Premiado" [The Architect and the Accessible City: The Prize-Winning Essay] 10 Mai 2013. ArchDaily Brasil. (Trad. Baratto, Romullo) Acessado 25 Jun 2015. http://www.archdaily.com.br/112664/o-arquiteto-e-a-cidade-acessivel-o-ensaio-premiado

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